Tuesday, October 30, 2007

Sociologia de Bolso

Pingue-pongue
Sociologia de bolso

Rui Tavares
Público, 30 de Outubro de 2007

Lamento, mas agora não
posso ver a posição em
que fi cou a minha escola
nos célebres rankings. Não
me deixam abrir a porta e,
mesmo que a abrisse, lá fora só há
uma queda de onze mil metros no
meio do Atlântico.
A última vez que vi, porém, a
Escola Secundária Luísa de Gusmão
estava na segunda metade da
tabela. Um destes anos estávamos
ali por volta da 250.ª posição, mas
dois lugares acima do famigerado
Liceu Pedro Nunes. Ora toma!
Se tentar seguir a pista ao
pessoal da Luísa de Gusmão, e
não é um exercício que eu faça
muitas vezes, encontro uma artista
revelação do ano, um director de
revista, uma pivot de telejornal,
um doutorado em Biologia,
um actor do teatro nacional,
duas escritoras premiadas, dois
fotógrafos. Perdemos alguns de
nós: um morreu de overdose e outro
suicidou-se na primeira semana da
tropa. E há certamente bancários
avulsos, militares, funcionários
da junta de freguesia, professores
universitários, empresários,
taxistas, e devo incluir um dirigente
da universidade que diplomou
o nosso primeiro-ministro. Não
“tivemos sorte”, mas fomos talvez
mais longe do que teríamos ido
uma geração antes. Vínhamos do
Alto de São João e da Mouraria, da
Graça e da Curraleira, da Picheleira
e do Alto do Pina. Quando nos
encontrávamos para os trabalhos
de grupo havia casas com poucos
ou nenhuns livros. Mas a Biblioteca
Municipal da Penha de França era
ali ao lado e a Câmara Municipal (de
Jorge Sampaio) dava-nos bilhetes
para irmos ver matinés de cinema
ao São Luiz. Devemos muito às
escolas públicas, às bibliotecas
públicas, aos teatros públicos.
Para que serve esta
sociologia de bolso?
Unicamente para provar
que a sociologia de bolso
é um desporto acessível
a qualquer um, para qualquer
discussão, sustentando qualquer
tipo de tese. Já ouvi Maria Filomena
Mónica dizer-me que o fi nal dos
anos oitenta foi de “terra queimada”
na educação, e que não havia
clássico da literatura portuguesa
que entrasse nas salas. Eu estava
lá e permito-me discordar:
estudámos as cantigas medievais
e Bernardim Ribeiro, as Folhas
Caídas e Alexandre Herculano, Os
Maias e Camilo Castelo Branco. E
não fomos uma excepção: somos
do meio do ranking. Helena Matos
decreta o falhanço do ensino
público em Portugal, e eu tenho
a impressão de que um falhanço
não é uma coisa que se postula
mas que se diagnostica com dados,
principalmente quando se é adepto
do rigor. Onde estávamos nas
tabelas internacionais há uma ou
duas gerações, tanto em termos
relativos como de cobertura da
população? A Suécia estava toda
alfabetizada no século XVIII.
Querem comparar?
Estou disposto a reconhecer
que o ensino público português
tem um monte de problemas.
Mas para isso devo dizer que os
artistas, jornalistas e políticos que
estudaram em escolas públicas
e hoje inscrevem os fi lhos em
escolas privadas valem tanto
como os itinerários dos meus
colegas. Também nos livros de
sociologia há uma coisa chamada
“distinção”: antes era pôr os fi lhos
em “bons liceus” públicos da prémassifi
cação, hoje é pagar por ela
do seu bolso em colégios. Não me
parece mal. Não podem é concluir
que o ensino público se tornou um
inferno desde que os seus fi lhos
saíram de lá.
Mas nada disso justifi ca
pretender que o dinheiro público
fi nancie, através do cheque-ensino,
o ensino privado. Nem fantasiar
que os problemas do ensino
público se resolvem não gastando
dinheiro com ele. Bons resultados
no ensino público custam
dinheiro, ainda mais quando se
começa tarde. E neste país de
estádios de futebol e empréstimos
a administradores do Banco de
Portugal, não há dinheiro mais bem
gasto do que esse. Historiador


Nota: A propósito das crónicas da
semana passada recebi a informação
de que a Fundação Gulbenkian
não tem qualquer relação com
o Professor Watson. Creio que a
leitura das mesmas deixa claro que
não o pretendi sugerir.

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