Sunday, March 27, 2005

O anúncio por Carlos Vale Ferraz

O anúncio por Carlos Vale Ferraz

Público, 27 de Março 2005

Antes da prioridade ao aborto, os antecessores dos Movimentos Pró Vida criminalizaram a homossexualidade, em particular a sodomia, o prazer nas relações sexuais, especialmente o das mulheres, algumas formas de incesto e a infidelidade feminina

Oanúncio colocado neste jornal por um sacerdote da Igreja Católica de que não ministrava os seus sacramentos aos adeptos das práticas anti-natalistas que vão do preservativo à pílula e do dispositivo intra-uterino ao aborto, levantou um indignadíssimo clamor de estupefacção.
Em princípio sem razão para tal, porque o dito sacerdote mais não fez que exercer o direito de qualquer responsável por uma agremiação a negar o acesso aos benefícios estatutários aos sócios faltosos e relapsos ao cumprimento dos seus deveres.
A questão é interna e diz respeito aos fiéis da Igreja Católica. Dada a separação das igrejas do Estado, desde que as práticas religiosas não colidam com as leis gerais, ninguém exterior tem o direito de se intrometer.
Mas, ao escolher um grande meio de comunicação, aquilo que o sacerdote anunciante veio dizer é que as suas regras particulares deviam ser impostas como obrigação a todos. O que está na linha dos movimentos Pró Vida, de colocar no campo da ignomínia os opositores das suas regras e assim as trazerem da esfera do privado para a do público (neste caso literalmente), para passarem dos sistemas de crenças aos sistemas da ética, da moral e do direito. E aqui todos estamos envolvidos enquanto cidadãos.
Se eles são Pró Vida, os outros são necessariamente Pró Morte. De um lado os bons, do outro os maus. De um lado os que cumprem a lei, do outro os criminosos. O Estado não pode ser indiferente a esta opção. Vá de exigir a sua tradução na lei penal de aplicação generalizada!
A falta de escrúpulos desta proposta é tão gritante como repugnante o recurso à demagogia em que assenta a sua defesa e a chantagem que lhe está associada.
Demagogia, porque os seus defensores querem fazer crer que se trata de uma norma sobrenatural, de um valor primordial onde assenta a nossa condição humana. De facto é uma causa conjuntural, pois ao longo da sua história a Igreja Católica julgou o aborto de forma muito variada e a luta contra a norma jurídica que admite a interrupção voluntária de uma gravidez é uma prioridade recente dos movimentos que se reivindicam do cristianismo nas sociedades desenvolvidas do Ocidente.
Antes da prioridade ao aborto, os antecessores dos Movimentos Pró Vida criminalizaram a homossexualidade, em particular a sodomia, o prazer nas relações sexuais, especialmente o das mulheres, algumas formas de incesto e a infidelidade feminina. Mesmo no período mais repressivo da Idade Média o aborto era pouco castigado nos livros penitenciais e depois as práticas abortivas passaram a ser ignoradas, assim como a morte de recém-nascidos, ou a sua entrega nas rodas de enjeitados.
Chantagem, porque o eficaz produto de marketing que resulta da ideia Pró Vida, mais do que bebés, faz nascer bons adeptos adultos atraídos pela carga moral e afectiva associada ao conceito de vida e estes rendem os votos que nas sociedades democráticas materializam o Poder. Votos que os promotores daquilo que podia ser um respeitável movimento pró-natalista ameaçam só darem a quem aceitar submeter a totalidade dos eleitores aos seus interesses particulares, em estabelecer como lei universal a norma do seu grupo.
Na luta pelo direito ao aborto, ou na falácia da Pró Vida, estamos no coração da política pura e dura, na luta onde vale tudo para ganhar ou manter parcelas de poder, o que historicamente tem mais a ver com a morte do que com a vida, com a Terra do que com o Céu.
As barrigas das mulheres, os fetos a boiar em formol, as bizantinas discussões sobre o momento do início da vida, as disputas nos tribunais, os autos de fé e as procissões, são apenas enfeites na cortina de enganos que escondem a verdadeira batalha pelo controlo da vida dos homens do nascimento à morte, inerente a todas a religiões e servem nos nossos dias para algumas igrejas cristãs na Europa tentarem através delas reassumir parte do poder que já tiveram nos centros da decisão política ou para o aumentarem, como acontece na América.
É evidente que nada disto tem nada a ver com Deus nem com a salvação das almas. A questão que o anúncio levanta de forma canhestra, não é o de fiéis católicos ficarem privados de receberem os sacramentos da sua Igreja, a questão é o de mulheres e homens poderem ser e serem constituídos réus num Tribunal por imposição da Igreja Católica! Isto é, de voltarmos a ver Inquisidores mandarem entregar cidadãos ao braço secular da lei. Escritor

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