Sunday, February 27, 2005

Querer. Poder. E saber Por António Barreto

Público, 27 de Fevereiro de 2005


Não me interessa muito discutir, para já, se Sócrates é ou não inteligente e corajoso ou se tem carácter. (...) Por agora, interessa-me saber que tem os meios necessários
a um governo competente e a uma política decente.
E que a sua utilização depende dele. Só depende dele

Há quem já saiba tudo o que vai acontecer. Os maiores desastres imagináveis ou glórias históricas e inesquecíveis. Também há quem tenha a certeza de que o novo Primeiro-ministro é um herói e um santo. E quem não duvide que ele seja um incapaz, mediano e fraco. Finalmente, enquanto uns garantem uma legislatura dourada, logo seguida de outra ainda melhor, outros asseveram que esta nem sequer chegará ao seu termo normal. Sinceramente, não sei nada disso. E tento moderar as minhas previsões e preconceitos. Vamos ver.

APESAR DE MUITOS CRENTES AFIRMAREM que a vitória de Sócrates e dos socialistas se ficou a dever ao "projecto", ao "programa", às "ideias" e à "esperança", a verdade é que essa opinião não resiste a um só argumento. A histórica enxurrada ficou a dever-se, em primeiro lugar, à saudável e higiénica vontade do eleitorado de se ver livre de Santana Lopes; em segundo, ao razoável desejo de afastar Paulo Portas; em terceiro, à esperança de que o despedimento do governo, com mais do que justa causa, traria logo a seguir melhores dias, até porque o PS prometeu que tal era possível. Finalmente, o eleitorado pensou que só votando no PS seria possível concretizar todos ou alguns dos objectivos acima referidos. Quanto ao "projecto", com excepção de um fantasmagórico "choque tecnológico", ninguém sabe sequer aproximadamente aquilo de que se trata. Aliás, a esquerda "de projecto", que também ganhou votos, mora alhures, no partido comunista e no Bloco.

A VITÓRIA DO PS FOI DE TAL MODO CONcludente que o governo está em boas condições para, livremente, escolher entre o disparate e o bom trabalho. Nunca este partido esteve tão livre de hipotecas e amarras. É verdade que lhe faltam os meios económicos e financeiros, mas também é certo que nunca teve uma margem de liberdade política tão nítida. A direita está preocupada com a sua reconstrução, o que é um bem. O estado em que se encontra actualmente, mais ou menos em cacos, não é recomendável, pelo que se deseja uma rápida recuperação. Quanto à extrema-esquerda, procura as linhas de fractura da maioria. Esta última, todavia, não se vai deixar quebrar, pelo menos por uns tempos. Quer isto dizer que o governo, além de votos, tem tempo. Em breve saberemos se tem ideias e gente capaz. Ou antes: saberemos se Sócrates tem vontade de ir buscar as ideias e a gente capaz.

SÓCRATES CONTRAIU NUMEROSAS DÍVIdas. Junto de camaradas, amigos, barões, notáveis, empresas, autarcas, intelectuais, artistas, jornalistas e grupos de interesses. Gostemos ou não, é sempre assim. Acontece que já lhes pagou as dívidas. Ao vencer as eleições, ainda por cima com maioria absoluta, saldou todos os débitos. Mas tem agora uma nova dívida, bem maior do que as outras: os votos do eleitorado. Pagar esta dívida significa perceber que as outras já estão liquidadas. Pensar o contrário, imaginar que tem de colocar os camaradas, ajudar os autarcas, favorecer o banqueiro do regime, dar um empurrão aos amigos interessados nos petróleos, na electricidade ou nas comunicações, consolidar os regimes de privilégios de que beneficiam empreiteiros, magistrados, advogados, médicos e professores, imaginar isso e muito pior obrigá-lo-á a não honrar a sua principal dívida junto do eleitorado.

SÓCRATES TEM OS MEIOS DE QUE NEcessita. Pode não pagar uma única dívida aos interesses: basta estabelecer que nada deve. Tão simples quanto isso. E ninguém terá força ou coragem para tentar cobrar. Sendo assim, é legítimo esperar muito dele. Pelo menos por uns dias. Depressa veremos se é ou não capaz. Se quer ou não. Se pode ou não. O primeiro sinal será o do Estado, da Administração Pública, das grandes instituições e dos negócios de Estado. Na Administração, em particular, reside o teste mais difícil. A que até hoje ninguém resistiu. Mais do que pela "histórica" maioria, Sócrates e o seu governo podem ficar na história se souberem romper definitivamente com a tradição da "confiança política" na alta administração (e na média... e na baixa...). Nenhum director geral ou presidente necessita de ser da "confiança política" dos ministros, tal como a nefasta tradição portuguesa, tanto salazarista como democrática, estatuiu. É por causa desse vício, aceite por todos os partidos que passaram pelo governo, que a administração portuguesa está no estado em que se encontra. É possível aumentar e alargar as competências dos directores gerais, transformando-os em dignos e responsáveis altos funcionários de Estado. É muito simples, caso seja necessário, substituir aqueles que tentem boicotar um governo democraticamente eleito, que se esforcem por "fazer cera", não cumprir o programa aprovado no parlamento ou contrariar as legítimas determinações superiores. O que não é preciso é nomear mais três a cinco mil camaradas e amigos, "de confiança", a acrescentar aos milhares que se foram sucedendo nestas últimas décadas. A mais importante e urgente reforma administrativa é a que elimine a teoria e a prática da "confiança política", que precederá todas as outras, as da eficiência, da dimensão e da modernização. Foi aí que, antes de si, falharam todos: Barroso, Guterres, Cavaco, Soares, Balsemão e Sá Carneiro.

ANTES DA REFORMA EDUCATIVA, QUE vem aí de certeza; da nova política de ambiente, que se prepara; dos aumentos de pensões que se contabilizam; dos inevitáveis disparates da regionalização que se anunciam outra vez; da fictícia criação de 150.000 empregos; da prometida reorganização dos hospitais; antes de tudo isso, aquilo a que devemos estar atentos é ao Estado e à Administração. Aí é que veremos qual é a força e quais são as intenções de Sócrates e do seu governo. Não me interessa muito discutir, para já, se Sócrates é ou não inteligente e corajoso ou se tem carácter. Essas qualidades são essenciais, mas teremos tempo para o ver à obra e chegar a conclusões. Por agora, interessa-me saber que tem os meios necessários a um governo competente e a uma política decente. E que a sua utilização depende dele. Só depende dele. Se quiser. Se puder. E se souber.

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