Sunday, February 20, 2005

O País de Gil Por JOSÉ ALBUQUERQUE TAVARES

Público
Domingo, 20 de Fevereiro de 2005

Não é todos os dias que um ensaísta português merece o destaque de ser considerado pelo Nouvel Observateur um dos vinte e cinco pensadores vivos mais relevantes. É notável e bom que o ensaísta português José Gil aí marque presença. Essa nobre distinção coincidiu com a publicação pela Relógio D?Água de um novo ensaio deste autor, Portugal Hoje: O Medo de Existir, um trabalho no campo da "análise das mentalidades" e mais um diagnóstico do "bloqueio português", o social e o de desenvolvimento. A perspectiva é histórica e antropológica mas procura - e sofre de - uma aproximação à actualidade. Por isso é irresistível tentar aprender o que este medo de existir nos pode ensinar.

O motivo primeiro de José Gil é verificar que a sociedade portuguesa, em mudança e depois de muito mudar nos últimos trinta anos, continua a lamentar-se de que "está tudo na mesma". Portugal é ainda "uma sociedade fechada, aberta à superfície e fechada no interior", com "medo de agir, de tomar decisões diferentes da norma (...), medo de amar, de criar, de viver. Medo de arriscar." Ou ainda "[uma] sociedade normalizada, consensual, que esconde, sob uma fachada (cada vez menos) brilhante, uma insegurança profunda." O livro Portugal Hoje: O Medo de Existir aponta as características que nos trouxeram aqui.

Uma das primeiras ideias é a falta de sentido e dinâmica no nosso "espaço público". Existe já um espaço dos media mas ainda pouco de espaço público, de verdadeira participação e debate. É a conhecida "falta de força da sociedade civil", a incapacidade de os portugueses falarem uns com os outros para mudar. Uma segunda ideia é a dificuldade portuguesa de exercer a crítica: "o Portugal democrático de hoje é ainda uma sociedade de medo. É o medo que impede a crítica". O que resulta é um cidadão que adquiriu reflexos de desrespeito pela lei, sem isso significar vontade nem empenho em a modificar. Esta é uma terceira ideia força, a dificuldade de relação com a autoridade, que perpetua uma tradição de rebeldia mansa em que os cidadãos simulam ser oprimidos por leis que se fingem duras e que se fingem aplicadas. Como diz Gil, em Portugal circula "muito menos poder do que aquele de que os portugueses são capazes". Por fim aquilo que mais pode atrasar-nos na vida económica, uma "ilusão da actividade e da iniciativa" e uma antiga e improdutiva "inteligência de sobrevivência". O resultado de tudo isto é uma desvalorização das trocas, económicas ou culturais, relativamente à propriedade, no sentido estrito ou no sentido de prestígio, de "status". Esta é a cultura do povo e a cultura de todos pois, ao longo da nossa história, "nem a nobreza nem a burguesia conseguiram produzir culturas verdadeiramente autónomas".

Que esta análise não choque pelo original é mau para o ensaísta e mau para o país, que há muito se olha ao mesmo espelho. Mas José Gil comete o pecado mais original: através do estilo e da substância de Portugal Hoje: O Medo de Existir, revela-se inteiramente merecedor da sua própria análise. Seria moroso dedilhar as revelações que provêm do estilo mas pode ser-se mais sucinto na substância. A aversão de José Gil à concorrência, que considera erradamente promovida como a "essência das motivações humanas", a recusa do "capitalismo vigente" como a "importação de modelos estrangeiros", a ideia de que os "rankings" têm como resultado principal diminuir e deprimir, e o paralelo que faz "entre os princípios "ideológicos" (...) do totalitarismo e os efeitos socio-económicos do capitalismo vigente e da globalização", confirmam no autor uma atitude em relação à mudança que está próxima do que o próprio José Gil, muito bem, critica.

Este ensaio deve ser visto como o fechar mais apropriado de uma longa auto-análise de um país. Sabemos o que somos e criticamo-lo, e os nossos grandes ensaístas mostram que também o são enquanto também o criticam. Chegou talvez o tempo de verdadeiramente vivermos, criarmos e amarmos, enfim, de verdadeiramente arriscarmos a nossa transformação.

Professor de economia da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa

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