Monday, February 07, 2005

Choque Horário por GRAÇ�A FRANCO

Choque Horário
Por GRAÇA FRANCO
Público, Segunda-feira, 07 de Fevereiro de 2005

Há quatro anos, estava eu em Bruxelas e a dar os meus primeiros passos nestas crónicas, escrevi aqui um texto intitulado "trés bien pour un portugais!" Nele advogava como "grande batalha nacional" a luta pela pontualidade. Dizia então: "não é a reforma fiscal, nem a mudança do sistema nacional de saúde nem sequer a reforma da administração pública! A grande batalha nacional é a da pontualidade. Não podemos ser simplesmente pontuais à saída, temos de nos transformar em autênticos relógios de ponto seja qual for a situação. (...) Trata-se de evitar a humilhação internacional. Com sorte daqui a cem anos hão-de reconhecer-nos o esforço".


Volto hoje à carga. Não na perspectiva "estrangeirada" que então justificava a minha prosa. Cansada de ser injustamente vista como um mero representante daqueles povos tão desorganizados que, " nunca chegam a horas e nem sequer conseguem sair a tempo porque são incapazes de realizar as respectivas tarefas no horário previsto".


Retomo o tema porque quatro anos passados, e na perspectiva estritamente doméstica, continuo convencida de que um simples esforço colectivo para cumprir horários poderia traduzir-se num verdadeiro choque de gestão (à PSD), contribuir para um acréscimo de produtividade muito superior ao previsto no choque tecnológico (à PS) e constituir um importantíssimo choque de valores (à PP).


Lembrei-me disso, de novo, há uma semana. Era Domingo. Precisava de comprar um presente e sabia de uma loja cheia de coisas originais aberta de manhã na avenida de Roma. De regresso do quiosque de jornais passei por lá. Estavam três graus. Colei com as crianças os narizes à porta e lá descortinámos uma impassível empregada afadigada a marcar preços. Olhou-nos superiormente, de soslaio, sem se dignar aproximar-se da porta onde um papelinho anunciava a abertura aos fins-de-semana das 10 às 19, com intervalo para almoço das 13 às 14. Faltavam sete minutos para a abertura e não se vislumbrava simpatia suficiente para uma confortável espera no interior. Enregelados optámos por voltar às 14. Cinco minutos depois da hora anunciada estávamos de regresso. A porta continuava fechada. Agora, eram duas as afadigadas formiguinhas no interior. Nem um olhar para os nossos narizes recolados ao vidro. Dessa vez bati furiosamente. Uma das meninas devolveu um olhar enfastiado e fez com a mão um gesto displicente: "está fechado!" - leio-lhe nos lábios.


Não desisto. Devia estar aberto! Quase grito, apontando para o papel afixado. A pequena aproxima-se da porta, incomodada com a insistência, como quem odeia a simples possibilidade de ter clientes: Qual horário?


Percebo que, pela primeira vez, intui a existência da folhinha afixada. Não abre a porta, não pede desculpa pelo incómodo. Não lhe passa pela cabeça perguntar em que nos pode ser útil. Não explica que decidiram passar a fechar ao Domingo mas se esqueceram de alterar o horário afixado. Fora de causa imaginar que esse esquecimento me dava o direito de exigir que estivessem pelo menos dispostos a vender-me (excepcionalmente!) qualquer coisinha. Nada, a menina limitou-se a virar com desprezo o papelote confirmando-lhe o teor e a vociferar de novo entre dentes: " o horário? Pois! Está mal!".


"Então é melhor alterar o papel!" grito do lado de fora. Passei, de novo, por lá ontem. O papel foi efectivamente alterado. Passou a indicar encerrado aos Domingos. Menos mal. Sempre evitará, a outros, o meu atraso da semana passada, depois de uma correria desenfreada pelos centros comerciais da zona onde nada parecia tão giro como a prenda deixada por detrás da montra e da porta fechada. Por melhor que seja o produto com esta atenção ao cliente, antecipo-lhe sobretudo um lindo enterro.


Percebem o ponto? Ligar a horários é apenas a gota de água de uma verdadeira revolução cultural. Só por isso, e porque estamos em campanha eleitoral, deixo aqui de novo a minha sugestão cívica capaz de mudar o país "em três tempos!": já, imediatamente e a partir de agora. O tema nos programas partidários talvez pudesse surgir através da proposta de criminalização do atraso, sujeito sempre que possível a pena de multa. Vendido como forma original de aumentar as receitas e reequilibrar as contas sem recurso aos impostos!


O único custo seria o de uma grande campanha cívica do estilo daquela contra a pirataria audiovisual. Qualquer coisa do género: "não cospe no chão? Não fala com a boca cheia? Não diz palavrões? Então porque é que chega atrasado?!"


Tinha duas vantagens: ajudava a interiorizar umas regras de boa educação em desuso e punha o dedo na ferida na questão da falta de cortesia. Escusava de se dizer o resto que é muito mais difícil de explicar, e virtualmente fracturante para alguns grupos de eleitores.


Não era preciso dizer que é um dever elementar dos trabalhadores trabalhar durante todo o tempo do seu horário de trabalho. Nem era preciso alertar para o dano colateral deste sistema de dislate horário que se traduz na exclusão das mulheres da vida política e as afasta dos cargos directivos. Como muito bem lembrava, ontem, a Dr. Leonor Beleza em entrevista à Pública, as mulheres são as únicas que, mesmo na condição de executivas, não podem dar-se ao luxo de não ter horários. Não só têm sempre um montão de coisas a fazer "depois das seis", como limitadas pelo facto dos infantários nem sempre terem hora certa para abrir mas todos terem hora certa para fechar.


Evitava também lembrar que o desprezo pelos horários permite a uma boa parte da população ser oficialmente detentora do dom da ubiquidade. Quando posso falar com o doutor? Ele vem à sexta-feira mas não tem hora certa porque também vai ao hospital. É questão de ir tentando. Afixados claramente os horários saberíamos que as horas de consulta nos dois sítios são exactamente iguais. Simplesmente umas vezes o doutor chega "um bocadinho atrasado ao consultório" e nas restantes "ligeiramente atrasado ao hospital". Há sempre "uma urgência" para desculpar tudo. A minha última visita ao médico estava marcada para as três por ordem de chegada. Às duas e meia perfilei-me à porta. Fui atendida perto das cinco por um senhor simpático e bonacheirão com quem ainda troquei umas palavrinhas sobre a situação política. Não me passou pela cabeça questionar o atraso, nem a ele desculpar-se pelo incómodo. Ir ao médico às três e sair às seis nem é mau...


Não são só os médicos. Há um sem-número de profissionais que já deviam estar num lado enquanto ainda é suposto permanecer no outro. Uma impossibilidade matemática só ultrapassada com o beneplácito de todos. Isto, para não falar do grupo que entra às nove para sair às nove e meia para tomar café. Regressa às onze para sair ao meio-dia. Almoça até às três e meia e está de saída às cinco.


Lembro-me de ter lido um artigo sobre gestão nos Estados Unidos onde se descrevia um conselho de administração de uma grande multinacional. Um executivo entrava esbaforido na reunião e pedia desculpa pelos "15 minutos de atraso". O presidente interrompia-o: "o seu atraso não foi de 15 minutos, mas de quatro horas!" "A reunião não estava marcada para as duas?", ripostava, o atrasado. "Precisamente. Ora, como estamos aqui dezasseis administradores há quinze minutos a esperar por si, o seu atraso corresponde a quatro horas de trabalho perdidas por esta empresa! Dada a média dos nossos salários implica um custo considerável".


Se contasse este episódio numa roda internacional haveria alguém a picar: "falta dizer que o administrador era o italiano! Porque tu és portuguesa!". Ficaria mais uma vez comprovada a nossa malapata reputativa.


Se cumpríssemos horários, a começar nos transportes públicos, e nos serviços do mesmo nome, mas estendendo isso a toda a sociedade, os dias efectivamente trabalhados subiriam em flecha. A produtividade disparava (ajudando a competitividade e a meta das exportações do PP). O crescimento económico iria atrás (tornando mais realistas algumas das metas do PS/PSD). O emprego subiria a seguir, tornando mais próxima a recuperação dos 150 mil postos de trabalho perdidos de que fala o Eng. Sócrates. Última vantagem: não custava um cêntimo!


Jornalista

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