Monday, February 28, 2005

A crise da escola do Estado

A crise da escola do Estado

Público, 28 de Fevereiro de 2005

Numa escola secundária da Grande Lisboa, um professor interroga um aluno. "Não estou interessado em responder", retorque o interrogado. Os pais são postos perante a situação e dizem: "Se ele não quer responder, é com ele". É um padrão recorrente.
Um número crescente de alunos desinteressa-se da escola ou abandona-a porque não acredita que ela melhore a sua vida. A escola é a organização que nos fornece os valores simbólicos sociais. Esta função era antes assumida pela Igreja mas hoje só é assim em resíduo. O Estado não pretende receber o apoio simbólico da Igreja.
As Forças Armadas exerciam também uma função simbólica, embora apenas auxiliar. A generalização da escolaridade obrigatória, nos anos 1950, menorizou o seu empenhamento na educação dos jovens, com a anulação das escolas regimentais. O fim do Serviço Militar Obrigatório significa que o Estado afastou as Forças Armadas do ensino, que aliás não abrangia o sexo feminino. De menor passou a pouco mais do que zero.
Noutro plano, a família poderia fazer concorrência ao Estado educador pois educar é uma responsabilidade primeira da família. Mas tem que enjeitar essa responsabilidade devido ao trabalho dos dois cônjuges fora do lar, ao divórcio, à baixa da taxa de natalidade e à democratização acelerada do ensino - que transforma os pais, menos escolarizados, em inferiores dos filhos. O Estado desajuda-a.
O Estado pretende o monopólio da administração dos conteúdos simbólicos que pautarão as condutas sociais. Este ensino do Estado é agora recusado por um número crescente de adolescentes. Têm sido notados os inconvenientes económicos da recusa: ficamos com mão-de-obra mal preparada. Mas os custos políticos são mais graves: o Estado deixará de conseguir transmitir valores. Porque a escola pressupõe a liberdade de aprender.
O problema não é só nosso. Na semana passada, o Governo francês teve que retirar a reforma Fillon devido à pressão dos estudantes liceais: consideravam que ela rebaixava o nível do "baccalauréat", a prova de acesso à universidade. Os estudantes manifestaram-se nas ruas de toda a França.
É um acontecimento histórico. Pela primeira vez os estudantes censuram o Estado educador por ser facilitador. O Estado saberá incorporar esta reivindicação de qualidade? Só se mudar muito. Com efeito o Estado já fixou metas quantificadas para o número de licenciados das universidades. Ora estas metas são incompatíveis com a qualidade: prometer, por exemplo, que 90 por cento de uma dada faixa etária terá formação universitária, é confessar o sacrifício da qualidade, necessário para atingir a dita meta.
Se o Estado não souber elevar a qualidade do ensino, desacredita ainda mais a sua escola. O que trará uma crise de legitimidade política, pois a escola é o seu único vector de integração simbólica. O que exigirá mais violência para evitar a desintegração social.


 

O Papa e a Democracia, por Manuel Carvalho

O Papa e a Democracia, por Manuel Carvalho
Público, 28 de Fevereiro de 2005

Em "Memória e Identidade", João Paulo II vai para lá do bem e do mal e, recorrendo a uma linguagem que raia a intolerância, manifesta dúvidas profundas sobre a natureza das democracias laicas e liberais

Nos últimos dias, João Paulo II regressou à actualidade. E não apenas devido ao agravamento do seu estado de saúde; também pela polémica que o seu livro "Memória e Identidade" está a gerar. Não que se vislumbrem nas declarações do Papa opiniões capazes de infirmar o seu profundo conservadorismo ou de relativizar a sua defesa de uma organização política e social nos limiares da teocracia. "Memória e Identidade" é um documento importante porque nos leva até ao extremo da concepção do mundo de Karol Wojtyla, permitindo-nos compreender por que razão é "um contraponto ao Papa João XXIII, que, durante o Concílio Vaticano II, nos anos 60, e de numerosas outras formas, tentou reconciliar os católicos com a era moderna", como ontem escreveu no PÚBLICO Ralph Dahrendorf.
No livro, Wojtyla estabelece o cartesianismo como a fonte primordial dos totalitarismos e das "ideologias do mal". Aquilo que nos ensinaram a considerar como uma libertação torna-se, aos seus olhos, um pecado original: depois de Descartes, "se o homem pode decidir por si mesmo, sem Deus, o que é bom e mau, pode também decidir que um grupo de pessoas seja aniquilado". Simples. Para o Papa, o mundo ideal existiu antes do racionalismo: na Idade Média, "com o seu universalismo cristão, com a sua fé simples, forte e profunda". A violência e a hipocrisia da Igreja desse tempo, que estiveram na origem da Reforma, não existiram, obviamente.
Do cartesianismo ao iluminismo e daqui à denúncia dos males das sociedades ocidentais vai um passo. Mencionando o laicismo "oposto ao evangelho", o Papa chega a perguntar se não estaremos perante "uma nova forma de totalitarismo subtilmente oculto atrás das aparências da democracia". Para João Paulo II, a soberania popular é irrelevante, e o Estado de Direito que garante o pluralismo de opiniões, de hábitos e de crenças e regula até o que é ou não é de "César" parecem merecer-lhe pouco mérito.
Mas é no ataque ao aborto que Karol Wojtyla melhor exprime o seu radicalismo. Não apenas porque o compara a um "extermínio legal", o que levou círculos judaicos na Alemanha a criticarem a relação que sugere com o Holocausto. Também porque, vitupera, este "extermínio" é decidido por "Parlamentos eleitos democraticamente". Ora, precisa o Papa, o nazismo também se consolidou com uma eleição, o que o leva a perguntar se nos Parlamentos, e, em concreto, no Parlamento Europeu, "não se estará operando uma nova ideologia do mal, talvez mais subtil e encoberta".
Nos tempos de incerteza e de mudanças profundas que conhecemos, é útil que o Papa promova os valores morais do cristianismo como referências fundamentais para o futuro. Mas, em "Memória e Identidade", João Paulo II vai para lá do bem e do mal e, recorrendo a uma linguagem que raia a intolerância, manifesta dúvidas profundas sobre a natureza das democracias laicas e liberais. Seguindo o seu raciocínio, é admissível que alguns fiéis as encarem como um alvo a abater. E, assim, o Papa que tanto contribuiu para a democracia no Leste, estará a abrir as portas às heranças mais negras do catolicismo. Que são muitas, como se sabe.

Manuel Carvalho

Sunday, February 27, 2005

Querer. Poder. E saber Por António Barreto

Público, 27 de Fevereiro de 2005


Não me interessa muito discutir, para já, se Sócrates é ou não inteligente e corajoso ou se tem carácter. (...) Por agora, interessa-me saber que tem os meios necessários
a um governo competente e a uma política decente.
E que a sua utilização depende dele. Só depende dele

Há quem já saiba tudo o que vai acontecer. Os maiores desastres imagináveis ou glórias históricas e inesquecíveis. Também há quem tenha a certeza de que o novo Primeiro-ministro é um herói e um santo. E quem não duvide que ele seja um incapaz, mediano e fraco. Finalmente, enquanto uns garantem uma legislatura dourada, logo seguida de outra ainda melhor, outros asseveram que esta nem sequer chegará ao seu termo normal. Sinceramente, não sei nada disso. E tento moderar as minhas previsões e preconceitos. Vamos ver.

APESAR DE MUITOS CRENTES AFIRMAREM que a vitória de Sócrates e dos socialistas se ficou a dever ao "projecto", ao "programa", às "ideias" e à "esperança", a verdade é que essa opinião não resiste a um só argumento. A histórica enxurrada ficou a dever-se, em primeiro lugar, à saudável e higiénica vontade do eleitorado de se ver livre de Santana Lopes; em segundo, ao razoável desejo de afastar Paulo Portas; em terceiro, à esperança de que o despedimento do governo, com mais do que justa causa, traria logo a seguir melhores dias, até porque o PS prometeu que tal era possível. Finalmente, o eleitorado pensou que só votando no PS seria possível concretizar todos ou alguns dos objectivos acima referidos. Quanto ao "projecto", com excepção de um fantasmagórico "choque tecnológico", ninguém sabe sequer aproximadamente aquilo de que se trata. Aliás, a esquerda "de projecto", que também ganhou votos, mora alhures, no partido comunista e no Bloco.

A VITÓRIA DO PS FOI DE TAL MODO CONcludente que o governo está em boas condições para, livremente, escolher entre o disparate e o bom trabalho. Nunca este partido esteve tão livre de hipotecas e amarras. É verdade que lhe faltam os meios económicos e financeiros, mas também é certo que nunca teve uma margem de liberdade política tão nítida. A direita está preocupada com a sua reconstrução, o que é um bem. O estado em que se encontra actualmente, mais ou menos em cacos, não é recomendável, pelo que se deseja uma rápida recuperação. Quanto à extrema-esquerda, procura as linhas de fractura da maioria. Esta última, todavia, não se vai deixar quebrar, pelo menos por uns tempos. Quer isto dizer que o governo, além de votos, tem tempo. Em breve saberemos se tem ideias e gente capaz. Ou antes: saberemos se Sócrates tem vontade de ir buscar as ideias e a gente capaz.

SÓCRATES CONTRAIU NUMEROSAS DÍVIdas. Junto de camaradas, amigos, barões, notáveis, empresas, autarcas, intelectuais, artistas, jornalistas e grupos de interesses. Gostemos ou não, é sempre assim. Acontece que já lhes pagou as dívidas. Ao vencer as eleições, ainda por cima com maioria absoluta, saldou todos os débitos. Mas tem agora uma nova dívida, bem maior do que as outras: os votos do eleitorado. Pagar esta dívida significa perceber que as outras já estão liquidadas. Pensar o contrário, imaginar que tem de colocar os camaradas, ajudar os autarcas, favorecer o banqueiro do regime, dar um empurrão aos amigos interessados nos petróleos, na electricidade ou nas comunicações, consolidar os regimes de privilégios de que beneficiam empreiteiros, magistrados, advogados, médicos e professores, imaginar isso e muito pior obrigá-lo-á a não honrar a sua principal dívida junto do eleitorado.

SÓCRATES TEM OS MEIOS DE QUE NEcessita. Pode não pagar uma única dívida aos interesses: basta estabelecer que nada deve. Tão simples quanto isso. E ninguém terá força ou coragem para tentar cobrar. Sendo assim, é legítimo esperar muito dele. Pelo menos por uns dias. Depressa veremos se é ou não capaz. Se quer ou não. Se pode ou não. O primeiro sinal será o do Estado, da Administração Pública, das grandes instituições e dos negócios de Estado. Na Administração, em particular, reside o teste mais difícil. A que até hoje ninguém resistiu. Mais do que pela "histórica" maioria, Sócrates e o seu governo podem ficar na história se souberem romper definitivamente com a tradição da "confiança política" na alta administração (e na média... e na baixa...). Nenhum director geral ou presidente necessita de ser da "confiança política" dos ministros, tal como a nefasta tradição portuguesa, tanto salazarista como democrática, estatuiu. É por causa desse vício, aceite por todos os partidos que passaram pelo governo, que a administração portuguesa está no estado em que se encontra. É possível aumentar e alargar as competências dos directores gerais, transformando-os em dignos e responsáveis altos funcionários de Estado. É muito simples, caso seja necessário, substituir aqueles que tentem boicotar um governo democraticamente eleito, que se esforcem por "fazer cera", não cumprir o programa aprovado no parlamento ou contrariar as legítimas determinações superiores. O que não é preciso é nomear mais três a cinco mil camaradas e amigos, "de confiança", a acrescentar aos milhares que se foram sucedendo nestas últimas décadas. A mais importante e urgente reforma administrativa é a que elimine a teoria e a prática da "confiança política", que precederá todas as outras, as da eficiência, da dimensão e da modernização. Foi aí que, antes de si, falharam todos: Barroso, Guterres, Cavaco, Soares, Balsemão e Sá Carneiro.

ANTES DA REFORMA EDUCATIVA, QUE vem aí de certeza; da nova política de ambiente, que se prepara; dos aumentos de pensões que se contabilizam; dos inevitáveis disparates da regionalização que se anunciam outra vez; da fictícia criação de 150.000 empregos; da prometida reorganização dos hospitais; antes de tudo isso, aquilo a que devemos estar atentos é ao Estado e à Administração. Aí é que veremos qual é a força e quais são as intenções de Sócrates e do seu governo. Não me interessa muito discutir, para já, se Sócrates é ou não inteligente e corajoso ou se tem carácter. Essas qualidades são essenciais, mas teremos tempo para o ver à obra e chegar a conclusões. Por agora, interessa-me saber que tem os meios necessários a um governo competente e a uma política decente. E que a sua utilização depende dele. Só depende dele. Se quiser. Se puder. E se souber.

Wednesday, February 23, 2005

A fronteira por Miguel Poiares Maduro

DN, 23 de Fevereiro de 2005

A fronteira por Miguel Poiares Maduro
Hoje, com o correio electrónico ou os sms, temos uma falsa sensação de distância




Há dias consultei um velho endereço de correio electrónico que tinha praticamente abandonado. Descobri que tinha outra vida! A julgar pelo "lixo" electrónico que aí recebo o outro eu sofre de graves disfunções sexuais, ganhou várias vezes a lotaria do Canadá, gosta de viagens de cruzeiro, tem estranhos negócios com familiares de ex-ditadores e, a crer nas inúmeras mensagens de agências de contactos, é extremamente popular entre as mulheres (algo teríamos de ter em comum…). No mundo virtual, esse meu velho endereço de correio electrónico, deixado ao abandono, tinha ganho uma vida própria e feito amigos bem diferentes dos meus!

Ironia à parte, este episódio fez- -me pensar na fronteira entre o real e o virtual e em como as formas de comunicação na Web estão a alterar as formas de socialização nas nossas esferas pública e privada e a questionar a fronteira entre ambos.

A Internet tem virtudes sociais! Na Net o conhecimento é anónimo e autoconstruído, logo liberto de preconceitos. É-se quem se aparenta ser perante os outros e não quem estes pressupõem que somos com base numa classe, raça, sexo, etc. Mas nem tudo são rosas.

Lawrence Lessig, no livro Code and Other Laws of Cyberspace, conta histórias de conflitos entre vizinhos em cidades virtuais ou de um "assassino" que relata os seus crimes em chat rooms, não passando afinal de um tímido estudante universitário que acaba na cadeia quando a polícia toma como real o que o estudante argumenta ser apenas ficção. Para Lessig o que é marcante nesta história é a circunstância de o ciberespaço permitir a Jake (assim se chamava o estudante) libertar-se dos constrangimentos do espaço real.

A mim, o que me impressiona é o facto de estes episódios não serem apenas realistas mas sim, em larga medida, uma outra dimensão de realidade. Que diferença representa um conflito entre dois vizinhos de uma cidade virtual que constroem aí uma vida face a um conflito entre dois vizinhos de uma rua de Lisboa?

A geografia é diferente mas as expectativas, os sentimentos pessoais e as consequências sociais serão realmente diferentes? No fundo, o que se passa no mundo real tem efeitos sobre nós não directamente, mas através da construção mental que dele fazemos. No mundo virtual, esta construção mental apenas passa a ter uma base real bem mais fina (um computador e uma ligação à rede).

E a fronteira é tão ténue que, no caso de Jake, a sua personagem virtual entrou em contacto com homicidas do mundo real que a pretendiam copiar. A personagem era fictícia mas o mundo em que se movia não era fictício. Queria Jake ser um assassino ou um escritor policial? A partir de certa altura isso deixou de ser relevante quando todos o tomavam por assassino e os corpos das vítimas começaram a aparecer…

Virtual. A socialização do mundo virtual é um pouco como se os sonhos deixassem de ser pessoais para passarem a ser socializados. A partir do momento em que outros entram nos nossos sonhos e com eles interferem, como vamos regular essa nova esfera das relações sociais?

Mesmo quando não nos mudamos para o mundo virtual mas apenas o utilizamos ao serviço da realidade tradicional somos profundamente afectados pelos instrumen- tos de comunicação dele resultantes. Não se trata apenas de facilitar ou promover a comunicação mas é a sua própria natureza que se altera. Lembro-me de como certas coisas difíceis tinham de ser comunicadas por carta. Hoje já não se escrevem cartas de amor. Estas não eram um mero instrumento de comunicação mas sim um mediador de sentimentos. A diferença temporal entre o tempo da escrita e o tempo do impacto da mensagem atenuava a ansiedade e libertava-nos de certos constrangimentos. A sensação de distância permitia ao destinatário deixar-se conquistar pelos nossos esforços ou digerir a desilusão deles resultante. Hoje, com o correio electrónico ou os sms, temos uma falsa sensação de distância. Escrevemos libertos do constrangimento da presença do outro mas com o impacto de uma comunicação imediata e presencial. Mesmo quando escrevemos cartas de amor por email já não são as mesmas cartas de amor a diluição da forma e o imediatismo da mensagem alteram a expressão do nosso amor. Talvez facilite o amor mas retira-lhe algum mistério.

Comunicar. Mas talvez o maior impacto da Internet nas formas de comunicação e socialização esteja na (com)fusão entre o espaço privado e o espaço público que promove. Os blogues e o seu impacto são um bom exemplo. Misto de diários pessoais publicados e colunas de opinião, diluem a fronteira entre o público e o privado e alteram radicalmente a natureza do discurso público. A atracção da escrita dos blogues está na sua espontaneidade e liberdade. São reacções genuínas e algo "epidérmicas", daquelas que temos numa conversa entre amigos. Mas a sua publicação dá-lhes a importância de uma mensagem pública. Ficamos prisioneiros de uma opinião que, frequentemente, não é totalmente reflectida. Uma coisa é uma reacção instantânea, outra é uma opinião de fundo. Nos blogues, os dois confundem-se. É aí que está o seu risco, mas também parte do seu interesse.

O problema acontece quando o estilo blogue é descontextualizado. A recente campanha eleitoral foi um bom exemplo dos riscos inerentes ao transplante deste tipo de comunicação para o espaço público mais tradicional. Os boatos eram disseminados por sms e discutidos livremente na Web, permitindo manter a aparência de conversa privada mas transformando-os realmente em tema do espaço público - e como os portugueses gostam de boatos! Em Portugal, transmitir um boato é sinal de importância só alguém importante é que saberia algo de uma tal importância sobre alguém tão importante… Perguntando-se, verifica-se que nunca ninguém assistiu a algo de concreto sobre o que é dito mas tal não é preciso… "toda a gente sabe" …! -.

O mais grave foi a tendência, que não é nova, de alguma imprensa para ir a reboque dos boatos e importar o estilo blogue. Para essa imprensa, os boatos deixam de ser boatos para passarem a notícia quando são citados em jornais estrangeiros. Ao mesmo tempo, as suposições substituíram os factos nos artigos políticos. O gosto de protagonismo parece ter-se estendido a alguns jornalistas ajudando a eliminar a fronteira entre discurso público e discurso privado.

Se há algo a aprender de tudo isto é que, se o mundo virtual é cada vez mais real, não podemos cair na tentação de importar as regras sociais desse mundo para o mundo real. Estes mundos têm regras sociais distintas. Ler um com os olhos do outro é que é mesmo desvirtuar a realidade.
Miguel Poiares Maduro

miguel.maduro@curia.eu.int

Monday, February 21, 2005

Os Depoimentos Contraditórios da Irmã Lúcia Sobre as "Aparições de Fátima" Por LUÍS FILIPE TORGAL

Público
Segunda-feira, 21 de Fevereiro de 2005

No passado dia 13 de Fevereiro, morreu aos 97 anos (faria 98 em 30 de Março) Lúcia de Jesus dos Santos. E, com o seu abandono do mundo dos vivos, estão criadas condições para a hierarquia da Igreja Católica consumar aquilo que há muito parece ser o seu desejo: beatificar a mais importante das videntes de Fátima. Os fatimistas indefectíveis - e os políticos mais oportunistas - irão entretanto produzir sobre ela os já previsíveis discursos hagiográficos, os quais não deixarão de apregoar as suas incomensuráveis virtudes católicas e invocar o seu piedoso protagonismo na história das aparições de Fátima. A lamentável morte da irmã Lúcia poderá até servir de álibi para relançar no país e no mundo a imagem de um santuário que no último ano parece ter perdido demasiados peregrinos e, ainda, fornecer fundamentos para que o Vaticano apresse também o processo de beatificação de uma outra preciosa figura do panteão fatimista: o cónego Nunes Formigão.


No entanto, à margem de uma história mística e laudatória que sucessivos cronistas católicos, com o imprimatur da hierarquia da Igreja, souberam tão bem construir e difundir desde 1917, importa responder com rigor e objectividade a esta incontornável questão: qual o papel desempenhado pela irmã Lúcia em todo o processo das aparições de Fátima?


Neste breve e necessariamente preambular artigo de jornal, queria apenas propor aos leitores um exercício (que, obviamente, não é original) de análise comparativa de um conjunto de documentos fundamentais e que permitirá ajudar a responder à questão supracitada: os interrogatórios efectuados pelo pároco de Fátima à mais velha dos pastorinhos, entre Maio e Outubro de 1917 (ver Documentação Crítica de Fátima I, 1992), os interrogatórios aos videntes Lúcia, Francisco e Jacinta, feitos oficiosamente pelo cónego Nunes Formigão, entre Setembro e Novembro de 1917 (ver op. cit.), os interrogatórios oficiais de Lúcia, realizados pelo mesmo cónego e o padre Manuel Marques dos Santos, em 1924 (ver Documentação Crítica de Fátima, II, 1999), e as primeiras memórias redigidas pela freira Carmelita, entre 1935 e 1941, por ordem do bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva (ver Memórias da Irmã Lúcia, 8.º edição, 2000) - também ele um protagonista incontornável do processo das aparições e culto da Cova da Iria.


Do primeiro documento, datado de 1917, - e, sem dúvida, o mais fidedigno - ressaltam duas ideias singelas e pouco originais: a oração e a devoção, através da recitação do Rosário; o cumprimento escrupuloso desse popular preceito espiritual teria como contrapartida o final da guerra (de 1914-18) e a implantação da paz no mundo. Deste interrogatório vale ainda a pena reter a falsa profecia presumivelmente avançada por "Nossa Senhora" (em 13 de Outubro de 1917) sobre o final imediato da guerra, efectuada nos seguintes termos: "a guerra acaba ainda hoje; esperem cá pelos seus militares muito breve".


Os segundos e terceiros documentos supracitados, de 1917 e 1924, introduzem já elementos novos que complementam e tornam a mensagem primitiva mais intricada. Atestam o mandamento Mariano da recitação do Rosário em prol do fim da guerra e da implantação da paz no mundo. Contudo, acrescentam à prática da oração os conceitos explícitos de penitência e conversão, aludem ao ensinamento por Maria de uma jaculatória cujo conteúdo consubstancia a existência de um mundo trinitário pós-terreno onde o Céu, por um lado, e o Purgatório e o Inferno, por outro lado, se configuram respectivamente como os destinos dos piedosos (ou seja, dos fiéis ou convertidos aos mandamentos católicos) e dos pecadores. Os mesmos textos mencionam pela primeira vez um (e não três) enigmático(s) e polémico(s) segredo(s) revelado(s) por "Nossa Senhora" às crianças e uma misteriosa aparição, em 1916, de um anjo a Lúcia e a outras crianças da freguesia de Fátima. E reformulam já a profecia feita sobre o final da guerra, agora apresentada em duas versões ambíguas e literariamente retocadas: "Se o povo se emendasse, acabava a guerra", ou "convertam-se, a guerra acaba hoje, esperem pelos seus militares muito em breve".


Os últimos textos aqui citados, as memórias escritas pela irmã Lúcia, depois de 1935, com singulares e misteriosos pormenores, os quais contrastam aliás com as respostas lacónicas e simples que emitiu nos diversos inquéritos de que foi alvo logo após os acontecimentos de 1917, retomam e ampliam intangíveis revelações, algumas já avançadas em primeira mão pelo cónego Nunes Formigão, ao longo da década de 20: entre muitas outras novidades, a morte precoce de Jacinta e Francisco, a visão de um inferno dantesco e do Imaculado Coração de Maria cercado de espinhos, o famigerado pedido da "Virgem" para "consagrarem a Rússia ao Seu Imaculado Coração". E a referência ao final da guerra, que aqui foi feita de maneira a depurar as perplexidades que as mensagens anteriores encerravam: "A guerra vai acabar e os militares voltarão em breve."


Em face do exposto, podemos inferir que a história e a mensagem de Fátima que conhecemos através das palavras de Lúcia não são lineares. Isto é, muitos dos factos por ela narrados foram gradualmente alterados e efabulados entre 1917 e os anos 30. E podemos também adiantar, através da análise das diferentes mensagens, que essas transformações estão directamente relacionadas com as diferentes conjunturas político-ideológicas que se verificaram, entre 1917 e a década de 30 do século passado, em Portugal e no mundo.


A quem cabe a responsabilidade desta inequívoca falsificação da história? Não creio que se possa atribuir a Lúcia cuja vida pública e privada foi controlada e mesmo amordaçada desde 1921 (tinha então 14 anos). Pode e deve antes imputar-se a sectores poderosos da hierarquia da Igreja Católica que oportunamente souberam utilizar a última das videntes de Fátima como precioso peão ao serviço de um ambicioso e permanente movimento de renascimento católico de dimensões nacional e mundial.


Sei bem que, hoje como ontem, - num mundo pragmático, contaminado pela preponderância do "parecer" sobre o "ser" - os argumentos que sustentam esta perspectiva de nada valem e aqueles que a advogam são até rotulados, por sectores católicos mais conservadores e intolerantes, de ateus e anticlericais obstinados ou então de loucos inspirados por maquiavélicas teorias da conspiração. São esses mesmos sectores que em público preferem sistematicamente ignorar, omitir ou desvalorizar as contradições que a história de Fátima encerra e branquear os axiomáticos paradoxos consubstanciados nos depoimentos de Lúcia (e de outros cronistas) com o fundamento de que, afinal, o culto da Cova da Iria se impôs ao mundo - e tal facto, na opinião deles, legitima o argumento de que as "aparições de Fátima" beneficiaram da mão de Deus.


Em verdade vos digo, não creio que Deus possa abençoar aqueles que em nome de Cristo se assenhorearam deste culto de primitiva expressão popular - igual a tantos outros que existem no país - e depois construíram de modo premeditado um conjunto elaborado de representações místicas com o desígnio supremo de disciplinar, angariar e manipular fiéis. Contudo, estou já profundamente convicto de que a irmã Lúcia sairá inocente de tal julgamento divino.

Historiador

Sunday, February 20, 2005

Computador Substituirá Cadernos e Livros em 150 Escolas Até Final do Ano Por ANÍBAL RODRIGUES

Público
Sábado, 19 de Fevereiro de 2005

Até ao final deste ano, Portugal deverá apresentar uma rede de 150 escolas em que cada aluno dispõe de um computador portátil com programas que substituem manuais escolares, proporcionam o acesso à Internet sem fios e o ecrã serve ainda de caderno para tomar notas ou fazer desenhos. Trata-se do projecto "Escolas Navegadoras", que ontem começou a funcionar na Escola do 1.º Ciclo de Ensino Básico de Avelar, em Ansião. Para além deste estabelecimento, o projecto arranca desde já em mais duas escolas: EB 2, 3 do Avelar e Secundária de Arouca.

"Queremos financiar o projecto com mais 15 milhões de euros, criando uma rede de 150 'Escolas Navegadoras' até ao final deste ano", anunciou Diogo Vasconcelos, responsável da Agência para a Sociedade do Conhecimento, durante a apresentação do projecto.

Por seu turno, a ministra da Educação, Maria do Carmo Seabra, naquele que foi o seu último acto público, confirmou a abertura de um concurso público que deverá ser lançado depois das eleições de amanhã. Face à provável mudança de governo - conforme indica a maior parte das sondagens - a governante considera que esta é uma matéria de "consenso" e por isso não teme nenhum "volte-face".

No quadro digital ao fundo da sala (sem giz ou apagador), a professora do quarto ano escreveu o sumário, pedindo depois a cada um dos alunos que redigisse e ilustrasse uma pequena composição sobre o Inverno no seu computador portátil. O que levou Maria do Carmo Seabra a considerar que naquela sala estavam "presentes todos os elementos do que deve ser a educação do futuro".

Numa espécie de minibalanço da sua passagem pelo Governo, a ministra elogiou as "parcerias entre sector privado, administração central e poder local", apontando essa união de esforços como o caminho a seguir.

Explicando ainda a razão das escolas do Avelar e de Arouca terem sido as escolhidas para arranque do projecto e não outras, recordou que foram elas que tomaram a iniciativa de se candidatar. Nesse sentido, apelou a que outros estabelecimentos tenham a mesma atitude, lembrando: "As coisas interessantes que eu vi em escolas [enquanto governante] foram sempre fruto do esforço das próprias escolas".

O ex-ministro da Educação Roberto Carneiro, apresentado por Diogo Vasconcelos como o mentor das "Escolas Navegadoras", defendeu a importância da aposta num ensino moderno, extensível a toda a vida e de uma aprendizagem que se faça não apenas do modo convencional, mas de um modo autónomo do ponto de vista de quem aprende. "Nós fomos grandes porque liderámos a ciência, a tecnologia e o conhecimento; voltar a sê-lo significa investir desde logo na escola", afirmou Roberto Carneiro.

O País de Gil Por JOSÉ ALBUQUERQUE TAVARES

Público
Domingo, 20 de Fevereiro de 2005

Não é todos os dias que um ensaísta português merece o destaque de ser considerado pelo Nouvel Observateur um dos vinte e cinco pensadores vivos mais relevantes. É notável e bom que o ensaísta português José Gil aí marque presença. Essa nobre distinção coincidiu com a publicação pela Relógio D?Água de um novo ensaio deste autor, Portugal Hoje: O Medo de Existir, um trabalho no campo da "análise das mentalidades" e mais um diagnóstico do "bloqueio português", o social e o de desenvolvimento. A perspectiva é histórica e antropológica mas procura - e sofre de - uma aproximação à actualidade. Por isso é irresistível tentar aprender o que este medo de existir nos pode ensinar.

O motivo primeiro de José Gil é verificar que a sociedade portuguesa, em mudança e depois de muito mudar nos últimos trinta anos, continua a lamentar-se de que "está tudo na mesma". Portugal é ainda "uma sociedade fechada, aberta à superfície e fechada no interior", com "medo de agir, de tomar decisões diferentes da norma (...), medo de amar, de criar, de viver. Medo de arriscar." Ou ainda "[uma] sociedade normalizada, consensual, que esconde, sob uma fachada (cada vez menos) brilhante, uma insegurança profunda." O livro Portugal Hoje: O Medo de Existir aponta as características que nos trouxeram aqui.

Uma das primeiras ideias é a falta de sentido e dinâmica no nosso "espaço público". Existe já um espaço dos media mas ainda pouco de espaço público, de verdadeira participação e debate. É a conhecida "falta de força da sociedade civil", a incapacidade de os portugueses falarem uns com os outros para mudar. Uma segunda ideia é a dificuldade portuguesa de exercer a crítica: "o Portugal democrático de hoje é ainda uma sociedade de medo. É o medo que impede a crítica". O que resulta é um cidadão que adquiriu reflexos de desrespeito pela lei, sem isso significar vontade nem empenho em a modificar. Esta é uma terceira ideia força, a dificuldade de relação com a autoridade, que perpetua uma tradição de rebeldia mansa em que os cidadãos simulam ser oprimidos por leis que se fingem duras e que se fingem aplicadas. Como diz Gil, em Portugal circula "muito menos poder do que aquele de que os portugueses são capazes". Por fim aquilo que mais pode atrasar-nos na vida económica, uma "ilusão da actividade e da iniciativa" e uma antiga e improdutiva "inteligência de sobrevivência". O resultado de tudo isto é uma desvalorização das trocas, económicas ou culturais, relativamente à propriedade, no sentido estrito ou no sentido de prestígio, de "status". Esta é a cultura do povo e a cultura de todos pois, ao longo da nossa história, "nem a nobreza nem a burguesia conseguiram produzir culturas verdadeiramente autónomas".

Que esta análise não choque pelo original é mau para o ensaísta e mau para o país, que há muito se olha ao mesmo espelho. Mas José Gil comete o pecado mais original: através do estilo e da substância de Portugal Hoje: O Medo de Existir, revela-se inteiramente merecedor da sua própria análise. Seria moroso dedilhar as revelações que provêm do estilo mas pode ser-se mais sucinto na substância. A aversão de José Gil à concorrência, que considera erradamente promovida como a "essência das motivações humanas", a recusa do "capitalismo vigente" como a "importação de modelos estrangeiros", a ideia de que os "rankings" têm como resultado principal diminuir e deprimir, e o paralelo que faz "entre os princípios "ideológicos" (...) do totalitarismo e os efeitos socio-económicos do capitalismo vigente e da globalização", confirmam no autor uma atitude em relação à mudança que está próxima do que o próprio José Gil, muito bem, critica.

Este ensaio deve ser visto como o fechar mais apropriado de uma longa auto-análise de um país. Sabemos o que somos e criticamo-lo, e os nossos grandes ensaístas mostram que também o são enquanto também o criticam. Chegou talvez o tempo de verdadeiramente vivermos, criarmos e amarmos, enfim, de verdadeiramente arriscarmos a nossa transformação.

Professor de economia da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa

Acerca da Superioridade Moral da Classe Médica Por LAURA FERREIRA DOS SANTOS

Público
Domingo, 20 de Fevereiro de 2005

Recentemente vimos no PÚBLICO, a propósito do aborto, um conjunto de opiniões sobre o facto de o código deontológico da classe médica diferir da lei penal: enquanto uns, como o bastonário cessante, defendem a harmonização, outros, como Gentil Martins, Daniel Serrão e o novo bastonário insistem basicamente, se bem os entendo, em que a classe é depositária de valores "universais", não sei se recebidos por revelação ou fax, e que, custe o que custar, os hão-de manter completamente inamovíveis, tanto quanto era suposto a Terra manter-se imóvel no tempo de Galileu. Afirma Gentil Martins: "A lei penal é muito importante, mas a ética médica não tem que estar subordinada à lei penal, tem 2500 anos. [...] Há princípios basilares que se mantêm - o respeito pela vida humana é sagrado". E Pedro Nunes: "Nós, médicos, temos valores universais independentemente das modas sociais". Dois comentários.

Em primeiro lugar, a ética médica não é uma coutada da classe médica. Como escreve Paul Carrick (cf. Medical Ethics in Antiquity, 1995), a gravidade do assunto é de tal ordem que não pode ser entregue apenas a estes profissionais. Por isso, soa a sobranceria que a classe médica se coloque do lado dos grandes valores, os "universais", remetendo o resto da população, em que se incluem, entre outras, pessoas do direito, da filosofia, do ensaio político, e tanta gente de boa vontade e boa inteligência, para o lugar obviamente desvalorizado dos modos de pensar equiparados a "modas". Mas assim se entende que, perante a nossa ignorância dos assuntos/valores verdadeiramente importantes, a classe médica só possa pôr-nos na ordem, como se fôssemos crianças mal comportadas. Não por acaso, Galeno (séc. II D.C.) pretendia que os pacientes olhassem para o seu médico com a mesma reverência que se tem por um deus.

Em segundo lugar, a estafada questão de que a ética médica tem 2500 anos. Se bem entendo, o que se quer dizer é que ela se encontra consagrada no denominado Juramento de Hipócrates. No entanto, este texto, que alguns elementos da classe médica invocam como se algo de sagrado e intocável se tratasse, deve ser devidamente contextualizado. Primeiro, trata-se de um texto que não reflectia a opinião e prática médicas da época, na Grécia e em Roma. Muito provavelmente, a maior parte dos médicos da altura nem sequer ouviram falar dele. Mais ainda, há incongruências entre o que se encontra determinado no Juramento e várias passagens da colecção de textos ditos hipocráticos. Sendo assim, como é que o Juramento passa a ter tanta importância? Precisamente a partir do momento em que os valores cristãos se tornam dominantes nos últimos 150 anos do Império Romano. Porquê? Porque era o código médico que mais se adequava ao cristianismo e porque o cristianismo acabou por se converter em religião oficial do(s) estado(s). Não esqueçamos que o Juramento está bastante marcado por influências pitagóricas, escola filosófica grega que considerava a obediência a deus o maior dever moral, devendo a existência servir para os humanos expiarem as suas faltas. Por isso, não deveriam cometer suicídio, fosse em que circunstância fosse, pois isso equivaleria a usurpar prerrogativas divinas. Por outro lado, deveriam deixar descendência para que a divindade continuasse a ser louvada. Assim se explica que só se invoque o Juramento para duas questões, o aborto e a eutanásia, pois aí reside claramente a convergência com a interpretação dominante do cristianismo. De facto, no Juramento diz-se que o médico não dará às mulheres uma substância abortiva nem, a qualquer outra pessoa, um medicamento/droga que possibilite matar alguém, embora neste último caso ainda se possa considerar se o que se encontra em causa é uma droga para assassinar alguém ou para ajudar alguém a acabar com o sofrimento, a seu pedido (eutanásia ou suicídio assistido). Quanto a outras partes do juramento, como a que proíbe o uso da faca pelo médico, ou seja, a prática da cirurgia, ou como aquela que obriga o médico a ensinar gratuitamente os filhos (não filhas) do mestre, já nunca são referidas.

Como afirmei, a maior parte da prática médica do tempo de Hipócrates não se regia por estas normas. O facto é que, como enfatiza Paul Carrick, no ambiente filosoficamente pluralista em que se vivia, nenhuma escola conseguia convencer o público mais ou menos "ilustrado" de que o aborto e a eutanásia (para mim, sempre "voluntária") fossem algo de moralmente errado. E algumas faziam mesmo a defesa do suicídio e da eutanásia em certas circunstâncias (pense-se, por ex., nos estóicos e em Séneca, nos cínicos e cirenaicos, ou em passagens de Platão), no que eram acompanhadas pelos médicos da altura.

Acabado este pluralismo filosófico com a chegada de uma concepção autoritária do cristianismo em que, como escreve Ricoeur, a religião pede a sanção do estado e o estado a unção da religião, ficamos entregues aos valores "universais" de que alguma classe médica tanto gosta. Infelizmente, enchem sobretudo a boca para falar de "respeito pela vida", sem sequer se aperceberem de que pode haver hermenêuticas distintas para um mesmo valor partilhado, que é o da inviolabilidade da vida humana (cf. R. Dworkin, Life's Dominion, 1993). Para além disso, esquecem-se de falar com a mesma ênfase na necessidade urgente de aumentar a oferta de cuidados paliativos, de controlar a dor, de cumprimentar as pessoas que entram nos seus consultórios, etc, etc.

Uma sugestão ao novo bastonário da Ordem dos Médicos e das Médicas: como já chegou a Portugal o filme Mar Adentro, galardoado com alguns prémios, e que retrata a luta do tetraplégico Ramón Sampedro pelo direito ao suicídio assistido, por que não ameaçar desde já com sanções disciplinares os membros que, na discussão, se manifestem a favor da despenalização da eutanásia? Em nome do respeito pelos valores "universais", é claro. E da "vida". Sobretudo, a vida de Ramón...

Docente da Universidade do Minho (IEP).

Thursday, February 17, 2005

Campanha Eleitoral Quase no Fim: o Dia Depois do PSD Por JOSÉ PACHECO PEREIRA

Campanha Eleitoral Quase no Fim: o Dia Depois do PSD Por JOSÉ PACHECO PEREIRA

Público, Quinta-feira, 17 de Fevereiro de 2005

1. O dia depois no PSD será muito mais duro e complicado do que as análises mais pessimistas possam fazer prever. Há demasiadas coisas em jogo, demasiadas pessoas com vários compromissos em jogo, demasiados empregos em jogo, para quem não tem alternativa, ou em risco de baixar muito no seu estatuto social e ter de voltar a ao mundo real. Muita gente se colará como cola-tudo à direcção actual, pedindo-lhe desesperadamente para ficar e considerar que qualquer resultado, seja ele qual for, será sempre "razoável", quando não "honroso".

Os pretextos choverão: ou porque o Presidente fez e aconteceu, ou porque a comunicação social fez e aconteceu ou porque houve uma conspiração universal dos "poderosos", ou porque os esfaqueadores de dentro impediram o génio do líder de se revelar a todos. Suspeito que esta última "razão" será a dominante, porque nunca poderão admitir que, se o PS ganhar as eleições, será de Santana Lopes (e Durão Barroso que o deixou em herança) a responsabilidade primeira. Não admitirão um erro sequer, atirarão para todos os lados, farão tudo o que seja necessário. Chamarão a si a coligação dos autarcas com o argumento de que não se pode arriscar turbulências dada a proximidade de outras eleições, tentar-se-ão antecipar pedindo um congresso rápido para ganhar tempo, tentarão esperar que o tempo passe e o cansaço e desesperança se instalem, farão tudo para desmoralizar quem se lhes oponha com a antevisão da guerra civil interna e a violência verbal para afastar os que não têm feitio nem paciência para "isto". O tempo será vital e começa na noite das eleições, que será decisiva. E a oportunidade será para os corajosos, até porque não é líquido que vençam.

2. Quem conheça o modo como funcionam os grandes partidos, na sua deriva oligárquica, sabe que há pouca política por detrás desta resistência. Não são diferenças de orientação política que explicam o que se passa, embora haja um resíduo ideológico na "direitização" do PSD, que a coligação com o PP provocou, e com a qual Santana Lopes é mimético. No entanto, não é isso que estará em causa, infelizmente para o debate público, mas sim o destino de um grupo dirigente.

Só para que isto não pareça abstracto veja-se o grupo parlamentar. Se o PSD tiver um mau resultado, o grupo parlamentar encolhe muito: os financiamentos da Assembleia serão muito menores, as instalações e os funcionários, idem. Toda uma pequena multidão de funcionários e assessores terá de regressar às suas origens, sendo que alguns são funcionários do partido e outros não, ficarão sem emprego. Os que regressam ao partido irão por sua vez confrontar-se com as novas camadas de funcionários entretanto admitidos ou promovidos, alguns dos quais dependendo de outras pessoas e influências, que já lá estão, colocados agora também numa situação precária.

Todos estes funcionários e assessores são militantes activos controlando secções ou sendo protegidos pela rede de influências que inclui deputados e dirigentes locais. Alguns são familiares dos familiares que chegaram a um emprego bastante razoável por esta via. O sistema de fidelidades e infidelidades políticas funciona aqui em pleno, visto que o recrutamento é fechado (dentro do partido, o que é natural), mas dependente da influência e não do mérito. As decisões são puramente discricionárias. Uns "chegaram" via JSD outros pelos TSD, outros pelas distritais, num sistema invisível de quotas que inclui muito clientelismo e patrocinato individual.

Tudo isto se joga no tabuleiro do quem é quem no interior do partido. Quem "aposta no cavalo errado", quem "dá um tiro no pé", tudo deliciosas frases do jargão político, coloca em risco a sua influência, a sua clientela, o seu emprego e estatuto. E isto pode alargar-se às centenas de lugares de nomeação política directa ou indirecta, sobrecarregando o partido com o regresso dos "boys" que cada mudança de governo traz. Centenas de pessoas com ligações muito próximas com o aparelho partidário, fonte quase exclusiva do seu estatuto profissional, estarão numa situação de instabilidade. Tão simples como isto. Numa revolução interna como aquela que o PSD poderá conhecer depois de 20 de Fevereiro, uma enorme vaga de insegurança ajudará à radicalizar o ambiente político nos próprios centros de decisão e o pior que poderá acontecer é apenas reduzir a mudança à substituição de grupos de influência dentro do partido entre os promovidos do "santanismo" pelos seus deserdados.

3. Por isso seria saudável que o maior número de militantes fosse chamado a decidir, porque só assim se pode minimizar (e apenas minimizar) o peso das estruturas que se vão enquistar na escassez dos recursos e nos compromissos recentes que os garantiram. É cómodo pensar que haverá uma sequência sem ruptura de unanimismos: os que apoiaram Marcelo, depois apoiaram Barroso, e depois Santana e agora apoiarão quem vier. Não penso que vá ser assim tão simples, porque a maleabilidade interna é cada vez menor e a fraqueza alimenta a rigidez.

Neste contexto, e caminhando-se para a oposição, as autarquias são mais seguras, daí o peso e influência dos autarcas, sendo as estruturas locais cada vez mais dependentes do poder autárquico e modeladas por ele. Resultado do desprezo pelo partido em si, que, desde Cavaco, é norma nos dirigentes nacionais, com a fugaz tentativa da "refiliação" de Marcelo-Rio como excepção, a depauperação da qualidade política do aparelho partidário foi-se degradando. Desde meados dos anos 90, o partido perdeu o contacto com as forças vivas do seu eleitorado natural e nacional, os "self made man" de hoje, nas universidades, nas empresas, na vida pública, a favor de uma "autarcização" de todas as suas estruturas.

Por tudo isto, um qualquer sistema de directas era hoje vantajoso para a democracia da escolha e para garantir que partido e sociedade civil não vão cada um para o seu canto, como aconteceu nos últimos seis meses. Eu fui o primeiro dirigente do PSD a ser eleito por eleições directas - já ninguém se lembra, mas a distrital de Lisboa foi a primeira a fazer directas após alterações estatutárias com uma participação excepcional dos militantes, acabando com o sistema de eleição por delegados em assembleia - e tinha então algumas reservas quanto ao alargamento do método a nível da direcção nacional do partido. A razão estava na mediatização das escolhas que inevitavelmente decorria das directas, que me parecia favorecer apenas os candidatos com mais televisão. Essa objecção permanece, mas, depois da última experiência do PS entre Sócrates e Alegre, parece-me a única maneira de fazer entrar algum debate de ideias e propostas no ambiente muito claustrofóbico das estruturas partidárias e mobilizar muitos militantes afastados da vida do partido.

Se se pretende renovar o PSD, depois de 20 de Fevereiro, dever-se-ia lutar não apenas por um congresso extraordinário mas por um processo que implicasse uma demissão colectiva de todas as estruturas distritais e eleições simultâneas para essas estruturas pelo método das directas em conjunção com a escolha de delegados para o congresso. Não é impossível de fazer com os actuais estatutos, e daria um abanão a todo o partido, fazendo participar o maior número de militantes numa escolha que irá ser decisiva para a sobrevivência do PSD como grande partido nacional.

4. Este artigo está escrito na forma do "deve". O seu autor sabe que o "deve" é sempre muito frágil, e, quando não se tem a responsabilidade do "deve", é fácil escrever coisas cruéis e cínicas sobre a realidade partidária e ficar por aí. Mas, se no dia 20, o PSD perder as eleições, eu estarei entre os que perdem. Acontece. Muitas pessoas acharão que para um crítico intransigente como fui e sou de Santana Lopes é a máxima incoerência "votar nele". Será, porque eu não conheço uma maneira de votar no PSD sem ser "votar nele". Mas não digo a ninguém para o fazer e compreendo muito bem que muitos dos eleitores tradicionais do PSD se preparem para votar em branco, ou não votar e mesmo votar no PS. Olhem para o que eu digo, porque o que eu faço é demasiado dependente das minhas circunstâncias e se quiserem do dilema em que me meti. Acontece e não é cómodo.

Quanto às indignações com a "incoerência" já as conheço e posso bem com elas. Algumas são de gente séria e devem ser ouvidas, outras são fruto da luta política e destinam-se mais a questionar a integridade do interlocutor do que a defender uma "coerência" que não se aplica aos "renovadores" que votam PCP, ou aos que acham que Sócrates é de "direita" e votam no PS. Acontece que nem sempre se pode estar com muitos dos que nos acompanham e seria certamente cómodo para mim proceder de outra maneira ou assobiar para o lado a disfarçar. Mas há momentos em que se tem de decidir sozinho e os dilemas não são abstracções. O meu dilema é conhecido e nunca o disfarcei em ambiguidades, nem em teatros de presença e ausência, de falas e de silêncios, cuidadosamente medidos ao milímetro, para depois do dia 20 se poder ter um pé em cada lado.

Quem estiver contra o PSD dificilmente pode contribuir para essa mudança, e quem seja indiferente a essa mudança, como na verdade o são BE, o PCP ou o PS (ou pelo menos parte do PS), pode dar-se ao luxo de confundir Santana Lopes com o PSD e o seu projecto reformista. Uma coisa é colocarmo-nos contra este epifenómeno (e foi apenas epifenómeno porque foi percursor e a personagem era pouco subtil, porque os mecanismos que o criaram continuam a funcionar em pleno na sua televisão de todos os dias...), outra coisa é colocarmo-nos contra o PSD e o seu papel na sociedade portuguesa. Eu assumo, se quiserem, um argumento ingénuo nestes tempos de cinismo: voto no PSD para ter apenas uma legitimidade, a de poder contribuir para a sua mudança depois do dia 20 de Fevereiro.

Historiador

Wednesday, February 16, 2005

Uma Farsa Ou... o Regresso ao Passado? por Miguel Frasquilho

Público
Quarta-feira, 16 de Fevereiro de 2005

Miguel Frasquilho


Vamos ser claros: a promessa - ou compromisso ou objectivo, como lhes queiram chamar - do Partido Socialista de ter na próxima legislatura um crescimento económico de 3 por cento ao ano e de recuperar os 150 mil postos de trabalho perdidos desde que a governação PSD-CDS/PP iniciou funções, em Abril de 2002, é absolutamente inexequível e, portanto, trata-se de uma farsa que é apresentada à população. É por isso que a procurarei desmascarar nas linhas que se seguem.


Apesar de referir que se trata de um objectivo, o que o PS faz é prometer a criação de 150 mil postos de trabalho até 2009, tudo baseado num crescimento do PIB de 3 por cento ao ano e no já hoje mui famoso "plano" ou "choque tecnológico".


O crescimento económico não se decreta. Não há diploma legal que possa garantir que cresceremos 3 por cento ao ano até 2009. Quem dera que assim fosse, mas as recentes projecções do Banco de Portugal, da Comissão Europeia ou a OCDE não vão nesse sentido: pelo menos até 2006, o crescimento não ultrapassará os 2,5 por cento anuais; e a prestigiada "The Economist" prevê, numa detalhada análise sobre a nossa economia, que um crescimento do PIB de 2,5 por cento seja atingido apenas em 2009, devendo ser sempre inferior até lá.


Logo aqui há uma grande diferença entre os programas eleitorais de PSD e PS nesta matéria. O PSD conta com a "sua" acção directa (isto é, dos decisores políticos e da administração pública), através de um "choque de gestão", para poder reduzir o peso do Estado na economia, elevar a produtividade e mudar este "estado de coisas"; o PS conta com aquilo que não pode controlar: um crescimento de 3 por cento. E, para lá chegar, apresenta um "plano tecnológico" - que ainda nem sequer se conseguiu perceber no que consiste...


Aqui entra o segundo ponto que quero realçar. Um "plano tecnológico" nunca produzirá efeitos palpáveis antes de 10 a 15 anos (uma geração, 20 a 25 anos, é o horizonte mais provável). Como é que o PS nos vem dizer que em apenas quatro anos (!) um "choque tecnológico" terá efeitos?! A possibilidade de o PIB crescer 3 por cento ao ano através de um "plano tecnológico" nem sequer é remota - simplesmente não existe.


Se, por milagre, tal sucedesse, seria possível recuperar os 150 mil postos de trabalho perdidos desde Abril de 2002? A Teoria Económica diz-nos que não, através da famosa lei de Okun, da autoria do economista Arthur Okun, que estabelece que o desemprego tende a reduzir-se (ou aumentar) quando o crescimento do PIB se encontra acima (ou abaixo) do seu crescimento potencial (ou tendência de longo prazo). A simples aplicação ao nosso país desta regra tal como foi formulada por Okun diz-nos que só seria possível recuperar 150 mil empregos em Portugal nos próximos quatro anos se a economia crescesse 4,2 por cento ao ano! Com 3 por cento, seriam criados pouco mais de 40 mil empregos.


O próprio PS reconhece que esta regra se aplica ao nosso país: no Relatório do Orçamento do Estado para 2000 (era o PS governo), na "caixa" da página 19 pode ler-se que "(...) vários estudos empíricos sugerem que em Portugal se tem verificado uma relação de Okun estável desde meados da década de 80". E, para confirmar que o PS tinha razão neste ponto, estimei esta relação para Portugal, com dados desde a nossa adesão à então CEE, em 1986, até agora (uma amostra de anos já significativa), tendo obtido um modelo que, do ponto de vista estatístico, mostrou uma forte aderência à realidade. Depois, projectei o resultado para a nossa economia até 2009, admitindo um crescimento anual de 3 por cento (como "promete" o PS), que o nosso crescimento potencial se situa, actualmente, entre 2 por cento e 2,5 por cento (o que me parece consensual), e partindo dos últimos números conhecidos do desemprego (3º trimestre de 2004, do INE, ou Dezembro de 2004, do IEFP). A conclusão a que cheguei indica que seria possível criar pouco mais de 80 mil postos de trabalho nos próximos quatro anos; para os 150 mil novos empregos, a economia teria de crescer quase a 4 por cento ao ano (mais propriamente 3,9) nos próximos quatro anos. Portanto, a lei de Okun estimada para a nossa economia continua a deitar por terra o "objectivo do PS" na área do emprego até 2009.


Desfeita esta falácia, não deixei de me interrogar - por que diabo teria vindo o PS prometer o impossível? A resposta surgiu logo que o programa eleitoral dos socialistas foi apresentado: por cada duas saídas de funcionários públicos, o PS admite, se vier a formar governo, contratar um novo funcionário! Segundo as suas estimativas, reformar-se-ão, até 2009, cerca de 150 mil funcionários públicos - pelo que entrarão 75 mil novos funcionários. E, desta forma, metade do objectivo de criar 150 mil novos postos de trabalho estaria garantido!


Como sabe o PS que a nossa administração pública necessita de 75 mil novos funcionários? Já estudou o assunto, já sabe as necessidades e os excedentes de todos os organismos e serviços públicos? Duvido. E se bem me lembro: em 2001, no Ecordep de Pina Moura - que infelizmente não chegou a ser colocado em prática, porque o ministro saiu antes de o poder fazer -, a regra não era "uma entrada por quatro saídas"? Ora, já que se gosta tanto de regras, por que não utilizar esta, bem mais restritiva e ambiciosa para modernizar a nossa administração pública e consolidar a despesa do Estado? Julgará o PS que já nos esquecemos do verdadeiro clientelismo despesista de 1996 a 2001, quando foram contratados mais de 130 mil novos funcionários públicos em termos líquidos (ou melhor, mais de 200 mil, porque se reformaram cerca de 70 mil)? Isto é, mais de 22 mil por ano?! É que nos dez anos anteriores, nos governos de Cavaco Silva, foram admitidos, em média, pouco mais de 5 mil funcionários públicos por ano...


Diz o PS que boa parte destas entradas correspondeu a trabalhadores em regime de avença (recibos verdes), que tinham forçosamente de ser integrados no quadro da administração pública. Com certeza; o problema é que esses casos não ultrapassavam os 30 mil a 40 mil indivíduos - e não 130 mil ou 200 mil... Então, entre 1998 e 2001 (com eleições autárquicas, europeias e legislativas no horizonte...), foram quase 30 mil as novas entradas por ano! Dei-me ao trabalho de verificar como teriam evoluído as nossas contas públicas se entre 1998 e 2001 o governo do PS tivesse admitido 10 mil novos funcionários públicos por ano em termos líquidos, mantendo-se tudo o resto constante. Pois bem, o nosso problema orçamental estaria hoje parcialmente resolvido, pois a factura anual corresponde a 1,5 por cento do PIB ou, a preços de hoje, cerca de 2 mil milhões de euros (ou 400 milhões de contos, na moeda antiga). E isto ano após ano...


Para se ter uma ideia: em 2001, Portugal não teria furado o Pacto de Estabilidade e Crescimento e, em 2004, o défice público, que terá atingido 2,9 por cento do PIB, teria sido de 1,4! Ou, de outro modo, não teria sido necessário integrar o fundo de pensões da CGD na Caixa Geral de Aposentações para se ter um défice inferior a 3 por cento do PIB.


Quando ouvimos o PS afirmar que assim o peso das despesas com o pessoal na administração pública será reduzido, nem se acredita - quem pagará as pensões aos 150 mil que se reformam? Claro, o Estado - ou seja, todos nós através dos nossos impostos! Portanto, com a regra do "1 para 2", a factura conjunta dos salários e das pensões públicas explodirá. Não haverá contenção nem consolidação. Pior: os esforços dos últimos três anos terão sido em vão.


É por isso que o voto do dia 20 de Fevereiro precisa de ser muito ponderado. Ainda estamos a pagar a factura da irresponsabilidade, do despesismo e do clientelismo que vigoraram de 1996 a 2001. E é uma factura que perdurará. Será que a queremos tornar ainda mais pesada? É que quer o eng. Sócrates quer a esmagadora maioria dos que o rodeiam são os mesmos que nos governaram entre 1996 e 2001 e fugiram... Entre a farsa "crescimento de 3 por cento ao ano/criação de 150 mil novos empregos" e o regresso ao passado, venha o diabo e escolha...


Economista, candidato do PSD à Assembleia da República pelo círculo eleitoral da Guarda

Tuesday, February 15, 2005

O princípio de Pedrito por Joao Pinto e Castro

O princípio de Pedrito 
http://blogoexisto.blogspot.com/2004/06/o-princpio-de-pedrito.html

(Há seis anos, o Público acolheu benevolamente nas suas páginas este artigo de opinião. Dada a sua manifesta actualidade, volto hoje a reproduzi-lo aqui sem alterações.)

Segundo o Princípio de Peter, todas as pessoas são promovidas até atingirem o seu nível de incompetência.

Como? Se uma pessoa se revelar competente no desempenho das suas funções, será promovida ao nível hierárquico imediatamente superior. Se voltar a cumprir nessas novas tarefas, será de novo promovida. E assim sucessivamente, até chegar ao ponto em que já não consegue dar conta do recado.

Terá, então, atingido o seu nível de incompetência. Chegada aí, não voltará a ser promovida e ficará estacionada num cargo para o qual, manifestamente, não se encontra preparada.

Assim se assegura que o mundo, nas suas múltiplas instâncias decisórias políticas, empresariais e culturais, é fundamentalmente governado por incompetentes.

Para obviar a este problema, inventou-se em Portugal, país engenhoso entre todos, um sistema melhor: o Princípio de Pedrito, expressamente concebido para evitar os malefícios decorrentes da aplicação do Princípio de Peter.

Manda o Princípio de Pedrito que, se alguém se revelar totalmente incompetente no desempenho das suas funções, não ficará eternamente acorrentado a essas funções, com manifesto prejuízo tanto para o bem-estar público como para o próprio. Pelo contrário, assegurar-se-á a transferência do incompetente para outro cargo onde possa fazer pelo menos tanto mal como no anterior - e, de preferência, bastante pior.

Suponhamos, por exemplo, que Pedrito, dada a sua pouca apetência pelo estudo, entra na escola do vício político pela porta das movimentações estudantis. E que começa logo a criar problemas como militante partidário, pela constante agitação que espalha entre as bases. Recruta-se então Pedrito para dirigente nacional, na sua qualidade de jovem e fanático seguidor do entretanto falecido fundador do partido. Se ele continuar, ainda assim, a revelar mais aptidão para perturbar os espíritos do que para dirigir qualquer coisa, será, na primeira ocasião, enfiado no parlamento à surrelfa do eleitorado, com o propósito de soltá-lo às canelas da oposição.

Se, no parlamento, passar mais tempo a incomodar os colegas de bancada do que a oposição, sugere-se ao prodígio que tente a vida empresarial. Se o projecto empresarial fracassar, convida-se Pedrito para membro do governo. Se, demonstrada a sua total ignorância na área de governação que teve a desgraça de lhe ir parar às mãos, e caído esse governo, ele se candidata a presidente do partido, e falha, ei-lo eleito presidente de um clube de futebol.

Depois de ajudar a afundar um pouco mais esse clube, eis que o seu momentaneamente reprimido sentido do dever o incita a procurar minar o poder do presidente eleito do partido e a iniciar uma guerrilha com o propósito de substituí-lo no momento mais oportuno.

Mas, se essa campanha falhar, haverá sempre a possibilidade de Pedrito se candidatar à Presidência de uma Câmara Municipal, seja ela a de Sintra, a da Figueira da Foz ou a de Saint-Denis. Caso também essa hipótese falhe, talvez a Presidência de uma corporação de bombeiros, combinada com a direcção de um novo jornal, possa servir de rampa de lançamento para uma eventual candidatura à Presidência da República.

Como se vê, não é fácil ganhar a vida nos tempos que correm. Para manter permanentemente as atenções da opinião pública focalizadas sobre si, Pedrito não se poupa a esforços para alcançar elevados níveis de notoriedade.

Para servir essa estratégia, ele trata de aparecer permanentemente no T-Club, na televisão, no Gigi da praia do Ancão, na televisão, no Diário de Notícias, na televisão, na TSF, na televisão, no Record, na televisão, na Nova Gente e na televisão. Ocasionalmente, uma revista de escândalos ou uma campanha publicitária utilizam abusivamente o seu nome, mas isso é irrelevante - o importante é aparecer, aparecer, aparecer sempre.

E, afinal, como está Pedrito de notoriedade?

Hoje em dia, há uma forma muito fácil e infalível de medir a notoriedade de alguém ou de alguma coisa. Basta ir à Internet, entrar num search engine como, por exemplo, o HotBot, e pesquisar quantas referências a essa pessoa se encontram em toda a Web.

Ora acontece que Pedrito, com referências em 88 sites da Internet, tem razões para estar satisfeito. A larga distância encontram-se Marcelo Rebelo de Sousa, com 36, e mesmo Mário Soares, com não mais de 65. Pedrito apenas é claramente batido por Jorge Sampaio, com um espantoso score de 516 referências!

Um dos pontos fracos desta estratégia de comunicação é que não é possível ser-se conhecido em abstracto. É-se sempre conhecido nalguma qualidade, como alguma coisa, e esse alguma coisa é sempre aquilo que destaca alguém face aos outros. Assim, Eusébio é conhecido como o maior futebolista português de todos os tempos. Alves dos Reis é conhecido como o maior vigarista português de todos os tempos. Álvaro Cunhal é conhecido como o único comunista vivo em todo o mundo.

E Pedrito, é conhecido como o quê? Como agitador estudantil? Como jovem político promissor? Como deputado? Como governante? Como único e legítimo herdeiro do fundador? Como dirigente desportivo? Como o eterno derrotado que sai sempre em ombros dos congressos? Como comentador político da televisão? Como comentador desportivo da televisão? Como figura proeminente do jet-set? Como banhista?

Ou, tão somente, como um tribuno de verbo fácil à procura de um lugar à medida das suas ambições?

Seja como for, a verdade é que, até hoje, só um tal Pacheco Pereira se atreveu a contestar a bondade do Princípio de Pedrito. Mas esse não é de confiança: lê muitos livros, é frequentemente acometido de opiniões e, ainda por cima, usa barba.

Monday, February 14, 2005

Vidente de Fátima morreu aos 97 anos, PSD e CDS-PP suspendem campanha após anúncio da morte da irmã Lúcia

Público, última hora

Política   13-02-2005 - 20h37


Vidente de Fátima morreu aos 97 anos, PSD e CDS-PP suspendem campanha após anúncio da morte da irmã Lúcia
 
Lusa

O PSD e o CDS-PP decidiram suspender a campanha eleitoral prevista para esta noite, tendo os sociais-democratas alargado a interrupção até amanhã, após o anúncio da morte da irmã Lúcia, hoje, aos 97 anos.

De acordo com o líder do PSD, Pedro Santana Lopes, o comício previsto para esta noite em Cabeceiras de Basto foi já cancelado, mantendo-se apenas um jantar com militantes, que não contará contudo com intervenções políticas.

"Estive há meia hora a falar sobre ela", foi "a última conversa que tive antes de vir para aqui", disse Santana Lopes em declarações à Rádio Renascença à saída de um comício em Guimarães, manifestando "todo o respeito" pela irmã Lúcia.

Para Santana Lopes, a morte da irmã Lúcia constitui um "momento impressionante para Portugal e para o mundo", quer para católicos quer não católicos, porque a religiosa teve também "uma vida impressionante".

O CDS-PP também já reagiu à morte da irmã Lúcia, tendo decidido suspender toda a actividade política programada para esta noite, no âmbito da campanha eleitoral, como sinal de respeito pela figura da vidente de Fátima.

O CDS-PP manterá o jantar previsto com militantes na Guarda, mas, "por respeito pela figura da irmã Lúcia", não haverá intervenções políticas.

Sunday, February 13, 2005

Quioto "É Claramente Insuficiente" para Conter o Aquecimento Global

Quioto "É Claramente Insuficiente" para Conter o Aquecimento Global

Público, Domingo, 13 de Fevereiro de 2005

O climatologista do Centro de Geofísica da Universidade de Lisboa não tem dúvidas: o clima, no futuro, vai ser diferente.


Temos é de fazer com que seja "toleravelmente diferente". E não basta o Protocolo de Quioto, que entra em vigor na próxima quarta-feira. Por Ricardo Garcia

Pedro Miranda é o principal autor dos cenários sobre o futuro climático de Portugal, integrados no projecto SIAM, no qual vários cientistas estudam os efeitos do aquecimento global no país. A poucos dias da entrada em vigor do Protocolo de Quioto - que obriga os Estados envolvidos a reduzir as suas emissões de gases com efeito de estufa - fala das variações do clima, de como o país está preparado para acompanhá-las e do que se pode esperar dos cenários de longo prazo.

As alterações climáticas em Portugal são já uma realidade?

A tendência da temperatura em Portugal é parecida com a da temperatura na média global, uma tendência de subida. Assim como a própria evolução lenta. Na média global, foi estimado que existiu um período de aquecimento até aos anos 40, depois houve um de arrefecimento até aos anos 70 e a partir de meados dessa década começou a actual tendência de aquecimento. E em Portugal estas variações funcionam muito bem. Nós estamos a aquecer a uma taxa que é parecida com a taxa média de aquecimento do mundo.

Estas variações não podem significar que estamos apenas a passar por um ciclo de aquecimento e não por uma alteração irreversível?

Aqui há dez anos, muitas pessoas diriam isso com convicção. Agora há um conjunto de factos que fazem suspeitar que isto não é verdade. Primeiro, a composição atmosférica não está a oscilar. A concentração, em particular de dióxido de carbono mas também de outros gases com efeito de estufa, tem crescido constantemente e não mostra nenhum sinal de diminuição.

Havendo este crescimento na concentração de gases com efeito de estufa, a consequência mais simples que podemos pensar é que o clima vai aquecer. Outro facto é o de que os últimos dez anos concentram praticamente todos os anos mais quentes do último século.

E isso não pode ser uma variação natural do clima?

Há estimativas que indicam que não houve nenhuma variação deste tipo nos últimos mil anos. Isto é um facto que, neste momento, é difícil de contestar.

É um exagero dizer que uma onda de calor como a do Verão de 2003 é um indicador das alterações climáticas?

É seguramente um exagero, a partir de um episódio, concluir imediatamente que estamos em fase de alterações climáticas. Mas quando nós temos muitos episódios em quinze anos seguidos, então começamos a pensar provavelmente que as alterações climáticas estão aí.

E para Portugal há alguma indicação neste sentido? Por exemplo, de que é maior a frequência de eventos meteorológicos extremos?

Penso que não existe um estudo muito claro em relação a isto. Há um sobre a evolução de indicadores de seca que parece indicar que as últimas décadas tiveram uma frequência de seca de Inverno mais alta. Em relação a cheias e tempestades, eu penso que não existe nada de muito credível neste momento para Portugal. Aliás, mesmo para o mundo existe alguma incerteza sobre isto.

É claro que há algumas ideias que podem ser consistentes com isto. Uma consequência possível do aquecimento global é que o ciclo da água se torna mais intenso num mundo mais quente. Se temos mais água na atmosfera, é provável que tenhamos mais tempestades. A água é aquilo que põe a máquina climática a andar.

O projecto SIAM aponta para importantes alterações climáticas no país. Que alterações são estas?

Os cenários de mudança global produzidos por qualquer modelo disponível neste momento indicam aquecimentos muito significativos nas próximas décadas, que, no caso da Península Ibérica, podem chegar a sete ou oito graus para a temperatura de Verão. No que se refere à precitipação, há sempre mais incerteza.

Mesmo na previsão do tempo para amanhã, é mais fácil prever a variação da temperatura do que prever a chuva que vai acontecer. Em geral, os modelos apontam para a redução da precipitação no Sul da Europa, não só em Portugal. O que os cenários propõem é um Inverno mais curto, com menos chuva na Primavera e no Outono, e menos precipitação total também.

Até que ponto se pode confiar nestes cenários? Esta é a principal crítica dos Estados Unidos...

O objectivo deste tipo de estudos não é tanto prever o que é que vai ser o clima no fim do século XX, mas é ver quais são os riscos que corremos, se não fizermos nada em relação à situação actual. Não podemos emitir gases com efeito de estufa sem limite. Temos de ter cuidado.

Provavelmente, o Governo americano só vai fazer alguma coisa quando os dados observados reais forem de tal forma drásticos que eles sintam que têm de fazer alguma coisa.

Qual é o aspecto mais sensível de adaptação de Portugal às alterações climáticas?

A variável mais importante nisto das alterações climáticas é provavelmente a água. O problema dos recursos hídricos em Portugal pode tornar-se muito complicado num cenário de aquecimento global.

Até que ponto o país está bem apetrechado para acompanhar a evolução do clima?

Em termos de monitorização climática, Portugal não está muito bem apetrechado. Houve um desinvestimento nas estruturas do Estado que fazem este acompanhamento, em particular no Instituto de Meteorologia.

O que falta? Equipamentos?

No caso do Instituto de Meteorologia, eu diria que o grande problema é a falta de pessoas. O Estado precisa de ter cientistas a trabalhar a tempo inteiro sobre este tipo de assuntos. E estes assuntos não devem ser tratados unicamente no contexto universitário.

Se o Protocolo de Quioto for cumprido, até que ponto vai ajudar no combate às alterações climáticas?

Em termos de emissões [de gases com efeito de estufa], o protocolo não vai resolver nenhum problema. Em termos políticos, é um sinal muito importante. O Protocolo de Quioto é só um primeiro passo; do ponto de vista técnico, é claramente insuficiente. Consoante aquilo que fizer e que outros protocolos que vão ter de vir a seguir a Quioto fizerem, nós vamos estabilizar [a concentração de gases com efeito de estufa] a níveis diferentes. Isto vai implicar climas diferentes.

Que o clima vai ser diferente no futuro é então um ponto pacífico?

O clima vai ser diferente. O objectivo das pessoas que se preocupam com isto é que ele seja toleravelmente diferente.

A Reforma Curricular e o "Choque Tecnológico" Por Lucinda Santos

Público
Domingo, 13 de Fevereiro de 2005

O início do ano lectivo foi perturbado pela colocação tardia de milhares de professores. De acordo com alguns meios de comunicação social, um só homem (...) resolveu num ápice o problema da colocação de professores.

(...) Na 5 de Outubro, igualmente um só homem cortou e costurou a revisão curricular do ensino secundário, herdada do Governo PS, e concebeu a nova reforma curricular, que está a ser concretizada no corrente ano lectivo. Não foi um especialista de educação que desenvolveu o processo e a sua atitude autista levou-o a não considerar opiniões mais conhecedoras, o que conduziu a que as matrizes curriculares dos cursos, designadamente das áreas das ciências e da tecnologia, tenham saído muito desfasadas das reais necessidades da preparação dos jovens quer para a vida profissional, quer para o prosseguimento de estudos.

Como se compreende que o curso tecnológico de Ordenamento do Território e Ambiente, que visa formar técnicos do Ambiente, não inclua na matriz curricular nenhuma disciplina de Química? Como pode um aluno terminar um curso de Ciências e Tecnologias sem nunca ter tido Física e Química? O mesmo se passa com a Biologia e a Geologia. E pasme-se com a extinção de cursos como o tecnológico de Química e o de Mecânica!

(...) Como é possível que futuros técnicos das áreas da Electricidade, Electrónica, Construção Civil e Informática tenham no 10º ano de escolaridade três horas de Filosofia por semana e apenas 90 minutos de Física e Química? (...) A Física é uma disciplina científica estruturante para as disciplinas técnicas das áreas de Electricidade, Electrónica, Informática e Construção Civil. Esta reforma curricular tem subjacente uma concepção de cultura bafienta e retrógrada que não considera a ciência e as suas aplicações como parte da cultura da humanidade.

E que dizer do peso que se dá à Língua Estrangeira nos cursos tecnológicos do ensino recorrente? Numa era de globalização e mobilidade, em que os técnicos têm que contactar com especialistas de outros países, participar em cursos de formação no estrangeiro, actualizar-se, lendo materiais escritos noutro idioma (normalmente o inglês), como se justificam 90 minutos semanais da Língua Estrangeira"versus" 180 em Filosofia?

E tudo isto porque o Ministério da Educação resolveu instituir o exame de Filosofia como obrigatório para os alunos do ensino recorrente que pretendam prosseguir estudos. No entanto, não terá articulado esta sua decisão com as exigências do ensino superior, pois não parece credível que, por exemplo, o Instituto Superior Técnico exija o exame de Filosofia, em vez do exame de Física a um aluno de um curso tecnológico que queira seguir Engenharia.

Este desenho curricular não prepara os alunos nem para o prosseguimento de estudos, nem para o mercado do trabalho. Que vão fazer estes técnicos, no futuro, com este défice de competências científicas e técnicas? Recitar Kant quando colocados perante um problema técnico que não têm bases para resolver? (...)

O sr. Presidente da República há muito tem vindo a alertar para a necessidade de se investir fortemente na educação e investigação, nomeadamente nas áreas da ciência e tecnologia, para Portugal vencer o desafio do desenvolvimento económico e social. Infelizmente, o apelo do sr. Presidente da República não fez eco no Ministério da Educação.

Em período de campanha eleitoral todos os partidos inscrevem a educação/formação como uma área de actuação prioritária. O Partido Socialista preconiza até um "choque tecnológico". Contudo, não é com esta reforma curricular que vai dispor de técnicos para concretizar esse ambicioso projecto!

Lucinda Santos
Almada

Em Defesa da Ciência e da Tecnologia Por JOSÉ MARIANO GAGO

Público
Domingo, 13 de Fevereiro de 2005

Ao ministro da Presidência coube vir a terreiro contra o plano de desenvolvimento científico, tecnológico e educativo que o PS se propõe executar. Segundo ele, o plano tecnológico do PS não serve. Ou porque já está a ser aplicado ou porque pressupõe acção e mais investimento do Estado a favor da ciência e da tecnologia, o que estaria mal: isso caberia ao mercado. Pelo meio, enalteceu a obra própria e denegriu a dos outros: antes de nós o deserto, depois de nós o dilúvio.

Portugal estava (em 1999) entre os primeiros países europeus a ligar todas as escolas à internet. O governo do PS não apenas lançou a política para a sociedade da informação em Portugal, a internet nas escolas, as cidadas e regiões digitais, os espaços internet, a iniciativa para os cidadãos com necessidades especiais, o programa operacional para o sociedade de informação, a iniciativa internet, como lançou a própria iniciativa europeia nesta matéria. O programa eEurope foi desenhado em Lisboa, negociado na Europa pelo governo do PS e aprovado durante a presidência portuguesa. Agora, estamos na cauda dos actuais indicadores de progresso e a Europa olha-nos com complacência: será o mesmo país?

Este governo juntou a ciência e a tecnologia ao ensino superior, e separou as tecnologias de informação a que inicialmente juntou a inovação. Isolada junto da presidência do Conselho de Ministros, essa componente crítica da política tecnológica, a das tecnologias de informação e comunicação e da sociedade da informação, perdeu rumo e capacidade. Durante quase dois anos parou programas e projectos e deixou de cumprir o contratado, designadamente com os melhores laboratórios de investigação e empresas desta área. Mas desdobrou-se em anúncios, planos de acção, palavras de ordem. O programa do PS propõe-se reforçar o que está bem, corrigir o negativo, generalizar o uso da internet na educação, abrir actividades novas, acelerar a desburocratização da administração e o acesso online aos serviços. Lança, por exemplo, o balcão único nas relações do Estado com os cidadãos e as empresas: competirá ao serviço público apropriado (e não ao utilizador) obter de outros serviços públicos os documentos e informações eventualmente necessários.

A política educativa esteve contra a ciência e a tecnologia. A reforma do ensino secundário extingiu laboratórios e actividade experimental. Tentou matar o Ciência Viva. O programa do PS, pelo contrário, torna obrigatório o ensino experimental, combate o insucesso escolar, duplica os inscritos em cursos profissionais e tecnológicos, reforça e desgovernamentaliza as instituições científicas e a sua avaliação. A política da ciência, fechada no ensino superior, tornou-se corporativa e isolou-se das outras políticas públicas. A política para o ensino superior, separada dos restantes sectores da educação e da formação, tornou-se alheia aos desafios da qualificação e da formação de activos. Retirou-se autonomia e parou-se a renovação dos laboratórios do Estado.

O programa do PS trata do apoio à ciência e do estímulo à inovação, especialmente a baseada em desenvolvimento tecnológico. Não opõe, antes alia a investigação nas universidades e laboratórios públicos e a que se desenvolve nas empresas. Defende todas as ciências, das engenharias às ciências humanas, avaliadas de forma internacional, independente e pública e promove a cultura científica. Anuncia medidas regulamentares que podem abrir mercados para novos produtos. Apoia a criação de novas empresas baseadas em resultados de investigação. Propõe incentivos internacionalmente competitivos à investigação e desenvolvimento (I&D) empresarial.

Reconhece agora o governo que fez mal em acabar com o regime de incentivos fiscais à investigação empresarial mas estar pronto a rever a situação que diz motivada pelo deficit das contas públicas. A desculpa não é verdadeira. Com mais despesa, deu às empresas não inovadoras o que deveria ter reservado às mais inovadoras. Vangloria-se que Portugal melhorou na Europa da inovação. Infelizmente isso respeita a indicadores de crescimento até 2002, ou seja, ao governo do PS.

O PSD apresentou ao eleitorado dois programas diferentes com poucos dias de intervalo. No primeiro, o esforço público em I&D deveria atingir 1% do PIB em 2010. Fazia sentido: é a meta europeia que o PS se propõe atingir no final da legislatura. Mas poucos dias depois, o PSD substituia o seu programa. Propõe-se agora "atingir 1/3 de 2% do PIB em 2010", quase o valor actual.A garantia do PSD é a estagnação do esforço público na ciência. A proposta do PS é duplicar esse esforço. A diferença não podia ser mais clara.

O PSD entende que o Estado não deve criar emprego científico: desculpa-se com as empresas. Mas é preciso qualificar laboratórios e universidades, hospitais, orgãos reguladores, bibliotecas e arquivos, e a administração. O PS anuncia a criação de mais 1000 lugares de investigadores, por contrapartida da extinção de lugares noutros sectores. Também se compromete a estimular a absorção de investigadores pelas empresas, reduzida pelo governo. O esforço público em I&D, pelas ideias que gera, pelos recursos que forma, é um poderoso estímulo à inovação empresarial e ao desenvolvimento social. Como em todo o mundo, foi assim em Portugal entre 1985 e 1993 e ainda mais entre 1995 e 2001.

Em matéria de gestão de riscos públicos e de segurança, o governo actual não parece entender o que fazer. O conhecimento científico e a capacidade técnica devem também proteger as pessoas, antecipar riscos e catástrofes, salvar vidas, ajudar a tomar decisões certas. Esse é um dos objectivos inscritos no plano de desenvolvimento tecnológico apresentado pelo PS. A diferença é clara.

O plano de desenvolvimento que o PS propõe é uma aposta de enorme exigência e responsabilidade, um verdadeiro contrato de modernização. Afirma um compromisso político de tal importância e gravidade que se espera das oposições tão só o anúncio sereno da vigilância no seu cumprimento.

Não foi isso que lemos até agora, ao menos do PSD. Mas nunca é tarde.

Membro do Conselho Coordenador do Fórum Novas Fronteiras que colaborou na preparação do Programa do PS. Antigo ministro da Ciência e da Tecnologia.

A Educação em Campanha Por ANTÓNIO BARRETO

Público
Domingo, 13 de Fevereiro de 2005

É impossível saber quantos eleitores terão lido um programa eleitoral por inteiro. Não creio que tenham sido mil. Muito menos quantos os tenham lido todos ou em grande parte, a fim de comparar. Umas dezenas, talvez. Esses livrinhos, cujo volume oscila entre 130 e 185 páginas de escrita compacta, têm tiragens de poucos milhares de exemplares, talvez apenas umas largas centenas. Áridos, os textos servem mais para garantir que existe um programa do que para comprometer. Neles se promete tudo e nada e o seu contrário, mundos e fundos, a felicidade e a fortuna. Nunca, que se saiba, um partido fez as contas e verificou, no fim da sua elaboração, quanto custaria fazer "aquilo". Nem sabem onde ir buscar os meios financeiros, materiais, técnicos e humanos para dar conta do recado. De qualquer maneira, não é isso que interessa. O partido que ganhar as eleições faz depois um programa de governo assaz diferente do eleitoral: com realismo, baixará os decibéis das suas disparatadas proclamações. Quando chegar a vez do orçamento de Estado, então sim, o partido do governo descerá sobre terra. Todos conhecemos o resto da história.


Os programas para a educação constituem desenvolvido capítulo desta literatura. Tudo somado (educação, desporto escolar, ciência, acção social, juventude e cultura), variam entre 25 e 45 páginas. Todos estão preocupados, garantem que a educação é essencial e prioritária e prometem obras mirabolantes. Deixo de lado o mau português, a linguagem de pedra e o tom redentor. Têm de comum e sem excepção os grandes objectivos: combater o insucesso e o abandono, formar a juventude, aumentar a população do secundário e do superior, aumentar o número de professores, expandir a rede escolar, aumentar as bolsas e os subsídios, desenvolver a formação profissional, multiplicar os laboratórios dedicados à ciência, investir nas novas tecnologias, alargar o pré-escolar, apoiar os deficientes, integrar os imigrados, retomar a educação e a alfabetização de adultos, abrir as escolas e as universidades à noite, estabelecer a escolaridade obrigatória de 12 anos, manter todos os jovens até aos dezoito anos na escola, prestar atenção ao português e à matemática, introduzir o inglês no primeiro ou no terceiro do básico, aumentar a carga horária dos alunos, aperfeiçoar o sistema de colocação de professores e estabilizar o corpo docente das escolas. Para a totalidade destes objectivos, não dizem quanto custa, quanto tempo demora, com que metas, com quem nem como. Fiz uns breves cálculos indicativos. Nenhum dos cinco programas analisados custaria, por ano, menos de 300 milhões de contos (mil e quinhentos milhões de euros) a mais, num orçamento que é já de mais de mil e duzentos milhões de contos (seis mil milhões de euros). Como este dinheiro não existe, como o défice público é hoje perigoso, como não há perspectivas de o crescimento económico futuro imediato ser tal que esses recursos surjam e como os outros capítulos (saúde, justiça, obras públicas, autarquias, segurança social) gastam mais ou menos na mesma proporção, estamos entendidos.


Quer isto dizer que não há diferenças? Que são todos iguais? Não. Essa foi, devo confessar, a minha surpresa. Explícita ou disfarçadamente, os partidos mostram as suas convicções políticas, ideológicas e doutrinárias. Esta é a melhor parte dos programas. Ao menos, aí, estão a falar a sério. Os programas dos três pequenos são os mais conseguidos, isto é, mais claramente comprometidos com um modelo e uma filosofia política. O do Bloco de Esquerda é caro, radical, subversivo, com pulsão totalitária, uniformizador, politicamente correcto, virtuoso, moderno, fracturante e multicultural. O do PCP é caro, nacionalista, burocrático, de inspiração soviética, obsoleto, conservador, demagógico, unificado e dirigista. Ambos pretendem descaradamente liquidar os sectores privados, prometendo ao mesmo tempo doze a catorze anos de escolaridade universal e gratuita, além de todo o ensino superior igualmente gratuito. O do CDS é caro, reaccionário, vago, repressivo, socialmente desigual e de prioridade absoluta ao sector privado. Promete que a intervenção pública deva ser apenas subsidiária e confia sobretudo no aumento das cargas horárias, na certeza de que deve haver exames nacionais quatro vezes em doze anos, além de provas nacionais de aferição todos os anos.


Os programas dos dois grandes são menos interessantes, mas merecem mais atenção. São mais parecidos. Mais próximos do que existe actualmente, isto é, mais imobilistas e menos propensos a correr riscos de ruptura. Mais caros, muito mais caros ainda. Mais confusos na doutrina, dado que querem tudo e não parecem capazes de escolher. Finalmente, é de um destes que sairá o futuro governo e respectivo ministro, que, espero, rasgue o programa do seu partido dez minutos depois de tomar posse.


O PSD quer fazer coexistir o público e o privado, com preferência para o privado, sem atentar contra o público. O PS quer fazer coexistir o privado e o público, com preferência para o público, sem atentar contra o privado. Ambos desejam mais participação das autarquias, dos interesses e das famílias na gestão das escolas, sem no entanto prever as respectivas responsabilidades. Mas enquanto o PS se deixa encantar pela desastrada "gestão democrática" actual, no que se junta ao PCP e ao Bloco, já o PSD abre as portas aos gestores profissionais para as escolas, sem, todavia, dizer como e quando o fará. Quanto à colocação de professores, surpresa das surpresas, o PS declara-se disponível a fazer experiências de descentralização. No que toca ao recrutamento de professores, nenhum dos dois retira as devidas lições das crises recentes e não abdicam da colocação feita nacionalmente. O PSD pretende manter alguma diferença entre universidades e politécnicos, deixando que uma espécie de colaboração avance e, a prazo, destrua as diferenças; mas o PS é mais desastrado e defende a aproximação entre umas e outros (é menos radical do que o PCP que deseja um sistema único). O PSD é vago no governo das universidades, mas diz procurar novas vias de gestão e responsabilidade. Pelo seu lado, o PS defende, no essencial, o actual sistema dito de gestão democrática, com órgãos eleitos, participação intensa de estudantes e demagogia a jorros. Onde o do PSD é vago e equívoco, o do PS é oportunista e tenta agradar a toda a gente: professores, pais, alunos, autarquias, interesses económicos, sector privado e sector público. Ambos defendem as propinas e os subsídios às instituições privadas, sendo que o PSD gostaria de emagrecer as universidades públicas, enquanto o PS desejaria controlar as privadas.


Gastar menos e gastar melhor? Não recrutar mais professores para um sistema que está a perder dezenas de milhares de alunos todos os anos (por causa da demografia)? Obrigar as escolas e as universidades a prestar contas à sociedade? Quebrar os sistemas fechados que gerem e administram a educação portuguesa a comando do mais nefasto de todos os ministérios? Introduzir as artes em todos os níveis de ensino? Forçar as prescrições? Cessar os regimes de destacamentos, de requisições, de empréstimo aos sindicatos e de horário dito zero de mais de 10.000 professores? Fechar definitivamente as escolas com menos de dez ou quinze alunos? Definir novos modelos de elaboração e distribuição de manuais escolares que retirem estes do autêntico "racket" de editores e professores actualmente em vigor? Liquidar o demagógico e absurdo sistema dito de "gestão democrática" do ensino superior que mais não é do que um sistema de louvor à demagogia e de elogio da preguiça? Devolver as escolas básicas e secundárias às autarquias? Tornar cada escola responsável pelo recrutamento do seu pessoal docente? Permitir que as universidades seleccionem os seus professores e os seus estudantes? Deixar que cada universidade defina o seu modelo e a sua missão? Nada. Não. Nunca. A estas e outras soluções que poderiam realmente mudar o desolador sistema educativo que temos, os dois grandes partidos nada dizem, fogem dos riscos como da pólvora.


Preparemo-nos pois para ver, um dia destes, um ministro saído deste estéril alfobre, do PS ou do PSD, olhar para o programa eleitoral de soslaio, preparar um programa de governo bem intencionado e entregar-se-á nas mãos dos funcionários do ministério e nos braços dos sindicatos de professores, órgãos do mesmo corpo, como se sabe. Que tenha paz, no eterno repouso.

Thursday, February 10, 2005

HÁ VIDA DEPOIS DE 20 DE FEVEREIRO (3) MEMÓRIA CURTA - "TUDO NA VIDA SE RENOVA", JPP

http://www.abrupto.blogspot.com/
10 Fev 2005

14:05 (JPP)
HÁ VIDA DEPOIS DE 20 DE FEVEREIRO (3) MEMÓRIA CURTA - "TUDO NA VIDA SE RENOVA"

Para os que agora criticam quem critica Santana Lopes convém não ter memória curta. Em Abril de 2000, bem dentro deste ciclo político pós-Cavaco, Santana Lopes dava uma entrevista ao Expresso em que afirmava, preto no branco, a necessidade de criar outro partido e fazia um ultimatum ao PSD: ou mudava o PSD ou ele próprio mudava de partido. Nunca nenhum dos seus opositores actuais afirmou que iria criar outro partido contra o PSD. Toda a entrevista, lembrada pelo Pula, Pula Pulga, é típica do estilo egocentrista, errático e confuso de Santana Lopes, que sempre se pôde perceber, mas a que muitos foram cegos. Esta entrevista não é a única em que o tema da criação de um novo partido é nomeado. Fica aqui como documento a lembrar em 20 de Fevereiro a propósito das "facadas" nas costas.


opção inadiável de Santana

(...)
PEDRO Santana Lopes considera chegado o momento da «clarificação definitiva» no PSD e lança um ultimato: ou o partido muda ou muda ele de partido. Numa extensa entrevista ao EXPRESSO, que será publicada na Revista da próxima semana, o presidente da Câmara da Figueira da Foz volta a agitar as pantanosas águas do maior partido da oposição, não escondendo a impaciência com a situação que resultou do Congresso de Viseu e exigindo que se acabe «com a hipocrisia: todos falam baixo na mudança da liderança do PPD/PSD e, depois, ninguém, ou poucos, fala alto».
Garantindo que não está a defender a demissão de Durão Barroso, admite, no entanto, que não acredita no seu partido com o actual líder: «Conheço-o há muitos anos e não esperava que as coisas corressem tão mal como correram», confessa, remetendo Barroso para o pretérito e assestando as suas baterias em Marcelo Rebelo de Sousa - a quem atribui intenções de voltar a candidatar-se à liderança do PSD e, por isso, não lhe poupa críticas.

Contra a frente «anti-santanista»
Confessando-se estupefacto perante os rumores que referem a constituição de uma «frente-anti-santanista» destinada a evitar que ele chegue à presidência do partido - «Isto atinge as raias do ridículo!», comenta - Santana Lopes tranquiliza os seus adversários: «Quero dizer-lhes que não se preocupem, porque não vou fazer nada por isso». O seu plano, assegura, não tem nada de conspirativo: «A direcção do partido e o partido é que têm de promover, se quiserem, as medidas necessárias para mudar de vida. Se o fizerem, muito bem. Se entenderem que querem continuar com uma liderança do tipo da de Durão Barroso, eu discordo, mas respeito».

O primeiro passo, propõe, é um referendo interno sobre as eleições directas que o congresso de Viseu não aprovou: «Agora é o tempo certo para, com calma e serenidade, fazer o referendo sobre as directas», é o convite que endereça aos dirigentes do partido, garantindo-lhes: «Não faço campanha nem a favor nem contra, só quero saber se o partido quer ou não essas eleições directas, quer ou não mudar de vida, quer ou não deixar de funcionar em circuito fechado». O seu próprio destino, afiança, ficará de uma vez clarificado a partir daí: «Se o partido se começar a encaminhar no sentido das teses que defendo, terão de ser outros a escolher o novo caminho». Se assim não suceder, não hesitará: «Partirei à procura de uma alternativa por caminhos diferentes».

Um novo partido «é inevitável»
O autarca da Figueira considera inadiável a reorganização do centro-direita e está convencido de que esse processo conduzirá inevitavelmente a um novo partido. Se será ele ou não a liderar essa nova formação política, é uma questão cuja resposta deixa nas mãos dos seus companheiros sociais-democratas. O eterno candidato à liderança do PSD explica em detalhe as razões que o levam a rejeitar liminarmente tal estatuto e afirma-se «saturado»: «O PPD/PSD tem de mudar de vida», exige, num tom definitivo que manteve ao longo das mais de três horas de conversa e que só abrandou por uma ou duas vezes ao admitir que a sua indisponibilidade para voltar a candidatar-se à liderança cederia a um sério apelo dos militantes do seu partido em que, todavia, diz não acreditar.

Impaciente, o presidente da Câmara da Figueira da Foz esclarece que «chegou o momento de fazer a reorganização do centro-direita em Portugal». No seu entender, é necessário «construir uma alternativa», dado que «o centro-direita está bloqueado, objectiva e subjectivamente. Objectivamente, porque não há nenhum ponto de convergência entre os vários partidos desse espaço. Subjectivamente, porque, com as lideranças do PPD/PSD e do CDS-PP, essa convergência não é possível». Tal reorganização, admite, acabará por dar um só efeito: «Estou convencido de que é inevitável um novo partido. Resta saber quem o vai fazer».

Recusando que as suas palavras sejam interpretadas como «uma heterodoxia lesa-pátria ou lesa-partido», desdramatiza: «Tudo na vida se renova - as células do organismo humano estão em renovação permanente. E, no centro-direita, chegou a hora de mudar».

Pronto para uma alternativa
Reconhecendo que a política faz parte da sua vida, e que não saberia viver sem ela, recusa ficar de braços cruzados: «Sei que irei contribuir para a construção da alternativa ao PS. A questão está em saber se, de facto, será no meu partido ou não». Uma pergunta que quer ver respondida quanto antes: «Acho que é bom para o partido e para mim esclarecer isto». Por ele, não tem dúvidas: «Quero construir essa alternativa de centro-direita. Acredito que tenho condições para o fazer».

Uma alternativa que não significa necessariamente uma aliança com o CDS/PP para as legislativas - até porque, no seu entendimento, «se o PPD/PSD for pelo caminho que idealizo, pode ambicionar ganhar sozinho» -, mas que começa por vários acordos nas autárquicas que possibilitem uma mudança da realidade política. É aqui, sublinha, que «há uma necessidade de desbloquear caminhos que estão tapados», porque o que acontece hoje «é que o PPD/PSD e o CDS/PP são oposição um ao outro».

«Este relacionamento entre Durão e Portas é absolutamente inconcebível», condena, acrescentando que «um líder dum partido, por muitos problemas pessoais que tenha com outro, não pode dizer que nunca se sentará à mesa com ele, porque isso é bloquear soluções de futuro que podem ser necessárias». Uma relação diametralmente oposta à sua, que é fácil de perceber pelo que diz de Portas: «Não precisamos de conversar para nos entendermos ou desentendermos. Conhecemo-nos há muitos anos».

CRISTINA FIGUEIREDO e MÁRIO RAMIRES

Dicionário de Campanha a Duas Semanas do Fim Por JOSÉ PACHECO PEREIRA

Público
Quinta-feira, 10 de Fevereiro de 2005

CAVACO PRESIDENCIAL - É a palavra-chave para a noite de 20 de Fevereiro, porque será sob a sua sombra, real e virtual, necessária e ambígua, que o pós-legislativas no PSD se desenrolará. Na melhor das hipóteses, porque haverá uma escola de pensamento que se centrará nas autárquicas como argumento para manter o que resta e não mudar nada, e outra que se centrará nas presidenciais como momento de redenção partidária. Suspeito que esta escolha da sombra não será pacífica.


DEBATE SÓCRATES-SANTANA 1 - Toda a interpretação tem que ser minimalista, logo o resultado é pouco relevante.


DEBATE 2 - Foi pouco interessante, porque o método escolhido favorecia a ausência de espontaneidade, a única coisa que podia valorizar a interacção entre os dois candidatos. Foi pouco interessante, porque ambos têm pouca coisa a dizer para além de "slogans" mais ou menos plastificados e, acima de tudo, não falam normalmente, como as pessoas, nem falam dos problemas, a não ser para os adiar.


DEBATE 3 -Tudo o que Sócrates propõe custa mais dinheiro, tudo o que Santana propõe implica mais despesa. Nenhum diz uma única coisa concreta que pudesse significar uma efectiva redução ou redefinição do peso excessivo do Estado, e, quando o sugerem, aumentam-no noutro lado.


DEBATE 4 - O debate, para o que conta, favoreceu Sócrates junto do eleitorado, porque não o prejudicou, e beneficiou Santana, porque, quando a miséria é muita, qualquer migalha faz falta. No essencial não mudou nada.


FACT CHECKING.ORG - É um tipo de organização que faz falta em Portugal e que pudesse, em tempo útil, um dia ou dois, fornecer elementos sobre a fiabilidade e rigor dos números e afirmações que envolvem factos, do debate, e, por extensão, de toda a campanha.


FINANCIAMENTO DAS CAMPANHAS - Para haver maior transparência dos gastos de campanha era importante saber quais são as empresas a trabalhar para cada partido em áreas como a publicidade, "marketing" e relações públicas, consultadoria de campanha, montagem de palcos e contratação de artistas, colocação de cartazes, transportes e empréstimos de viaturas, etc.


GUTERRES - Apareceu em força na campanha do PS. É um erro clamoroso, dado que Guterres é um dos políticos portugueses cuja mera presença lembra sempre a fuga às responsabilidades e uma má governação, exactamente a sombra que o PS não deveria querer para a sua campanha.


HÁ COISAS QUE NÃO SE PERCEBEM e uma delas é por que razão Santana Lopes abriu um conflito com Bagão Félix com o argumento de que não poderá voltar a fazer parte do seu governo ,porque já faz parte de "outro". E Portas, Nobre Guedes e Telmo Correia também estão excluídos?


JOTAS - As "jotas" são a tropa de choque das campanhas, já menos do que o que foram, mas o bastante. Hoje os idosos também são tropa de choque, porque servem para ir de comício em comício, como as excursões da terceira idade.


JOTAS 2 - A verdadeira "jota" é a JSD. Gostaria de saber se finalmente se acabou com o péssimo hábito de lhes pagar uma espécie de salário diário pelos serviços em campanha, verdadeira corrupção do militantismo político.


O MEU É MAIOR QUE O TEU - Como todas as competições para os pobres de espírito, enganadoras, simples, fáceis, o truque da comparação dos comícios de Castelo Branco resulta sempre. Os jornalistas vociferam nas suas páginas de opinião contra a falta de "novidade" deste tipo de campanha, mas fazem a cobertura noticiosa a partir desses mesmos factores que consideram obsoletos.


OBJECTIVOS PARA O PS - Maioria absoluta. Não estão a fazer campanha para isso, mas as coisas estão tão mal do lado do PSD, que lhes pode cair o resultado nos braços.


OBJECTIVOS PARA O PSD - Ganhar as eleições, colocando a hipótese de ter maioria absoluta, é o único objectivo aceitável para o PSD. Reconhecendo isso, Santana Lopes já o afirmou, mas o problema é que ele afirma várias coisas ao mesmo tempo e depois, quando é preciso, só lembra a que lhe interessa. Qualquer "downgrade" deste objectivo, como tenho visto na boca de alguns jornalistas incautos, considerando 30 por cento o limiar de um razoável resultado do PSD, ignora o histórico eleitoral nos últimos 20 anos. Antes é arqueologia, não serve de comparação. Desde Cavaco Silva, queira-se ou não, o objectivo natural do PSD é a maioria absoluta. Foi, aliás, o que Durão Barroso pediu nas últimas eleições legislativas, para ficar perto desse objectivo. Resultados abaixo de 40 por cento afastam decisivamente uma liderança que foi "vendida" ao partido como garantia de vitória eleitoral. Outros suportariam resultados medíocres, Santana Lopes, o do "karma" eleitoral, desde a Figueira só pode ganhar, até porque nunca nenhuma eleição foi tão personalizada. Ao escolher fazer propaganda de si próprio mais do que do PSD, Santana Lopes colocou-se num plebiscito que ele mesmo provocou.


OBJECTIVOS PARA O PCP - Pela natureza destes dias de fim do comunismo, tal como o conhecemos, o PCP está de há muito tempo em "dire straits". Mas Jerónimo de Sousa trouxe ao PCP uma personagem apaziguadora, mais moderado do que muitos pensaram, mais simpático para a opinião pública do que muitos anteviram (certamente muito mais do que o agressivo moralista Louçã). O PS terá aqui uma reserva para governar mais sólida do que o BE, caso não tenha maioria absoluta. O PCP é mais confiável e menos errático do que o BE, e hoje muito mais moderado. Convém não esquecer que sem o beneplácito do PCP não teria havido acordo social entre os sindicatos e o patronato.


OBJECTIVOS PARA O PP - Depois da parada pessoal de Santana Lopes, a parada do PP é a mais arriscada destas eleições. O PP não está a fazer campanha para ser partido de governo (sabe que não o será, dada a derrocada do PSD), mas sim para sobreviver. Não parece mas é. Há que reconhecer que o faz bem, tendo para já conquistado uma complacência elogiosa da comunicação social como de há muito não tinha. Os órgãos de comunicação social ignoram benevolamente que o PP é o partido que mais está a usar o Estado (no seu topo, o Governo), para ganhar votos, com a agenda ministerial de Paulo Portas, Nobre Guedes e Bagão Félix subordinada à campanha.


"O SENHOR SILVA DEVERIA SER EXPULSO DO PSD" - O "senhor Silva" é Cavaco Silva e o autor da frase é Alberto João Jardim. Está tudo dito quanto ao que vai acontecer depois de 20 de Fevereiro. Uma pequena guerra civil, obra de Santana Lopes.


Historiador