Monday, November 01, 2004

Ranking de Escolas: o Charme Discreto da Iliteracia Por ANA BELA SILVA*

Público
Segunda-feira, 01 de Novembro de 2004

Tomando como ponto de partida médias de resultados em exames nacionais do 12º ano, o ranking visa seriar objectivamente as escolas secundárias (da melhor à pior) e apurar a excelência. Ora o modelo está longe de ser pacífico...

Num deslumbramento típico de recém-chegados à literacia aritmética, cai-se no erro primário de julgar que os números falam por si e arrumam a realidade (a escola) em categorias naturalmente transparentes... Ora uma média não é um dado neutro, mas um indicador construído que sintetiza uma tendência central, resultado de operações (sempre discutíveis) de escolha. Faz parte das regras do jogo (científico) discutir a adequação dos instrumentos de medida àquilo que se quer medir, às características dos contextos em que se vão aplicar. A construção de rankings assenta implicitamente em pressupostos de partida, e nele espelham-se não só dimensões da escola-objecto-avaliado como pontos de vista dos autores-sujeitos-avaliadores...

A simplicidade a que se reduz o retrato da situação educativa portuguesa, a partir do ranking, contrasta com uma realidade escolar diversa e multifacetada. O ranking aplana a heterogeneidade da população escolar, mais valia típica das escolas públicas que acolhem alunos com bagagens, trajectórias ou ambições escolares diversas - sinais de tempos diferentes. Da pré-modernidade: saídas e abandonos precoces, ingresso prematuro no mercado de trabalho, alunos "a tempo parcial", contextos familiares pouco escolarizados. E da modernidade: alunos "a tempo inteiro", famílias escolarizadas e mobilizadas para o sucesso escolar dos filhos. Ao lado de nichos de jovens com aspirações académicas, lutando por notas máximas, surgem contingentes numerosos que abandonam o sistema após o secundário, ingressando no mercado de emprego, e para quem os exames servem apenas para concluir o 12º ano. Às fileiras da "via de ensino" juntam-se as "fileiras tecnológicas", viradas para o desempenho prático de uma profissão. Uns alunos como outros fazem, dando-lhes sentidos diferentes, os mesmos exames nacionais - mas a diversidade dos trajectos "alternativos" só conta, como um incómodo (baixando médias), na feitura do ranking. Por isso se questiona a legitimidade de uma avaliação descontextualizada e que parece apostada em comparar o incomparável.

O avesso dos rankings

O cálculo da média implica um cuidado particular com a diversidade interna do universo que pretende caracterizar. Sendo muito heterogéneo, revela-se um indicador pobre e inadequado. Exemplo: que significa exactamente o facto dos 50 alunos de uma escola obterem uma média de 8 valores no exame de matemática?...cada um deles obteve 8 valores? 25 ficaram no 0, 25 nos 16 valores? Ou cinco tiraram 20 e quarenta e cinco 6,7?... A diversidade que a média pode esconder é um dos maiores obstáculos à sua utilização indiscriminada.

Privilegia-se, para a seriação final, um curioso indicador-síntese: a média de todos os resultados de um leque de provas variadas. Porém, nem todas as escolas entram na ordenação com os mesmos exames - o que em disciplinas de baixas médias (matemática, física ou química) tem um óbvio efeito (negativo) no resultado final. Cozinhada a partir de um cabaz de disciplinas tão díspares, qual o seu significado? Como se interpreta em si mesma, solta de indicadores cúmplices, outra face da mesma moeda? Eis dois: o nº de alunos que vão a exame, por disciplina - falamos de 4, 13, 58, ou 201 provas?..; o nº de alunos que, em cada escola, "ficou pelo caminho" entre o momento de entrada no secundário (10º ano), no início do 12º ano, e os alunos internos que chegam ao exame - ou não se quer perceber que a média das notas sobe (e com ela a posição no ranking) se se aumentam os crivos selectivos nos anos anteriores e se a escola escolher a dedo os alunos que quer levar a prestar provas?

As notas nos exames nacionais têm um peso relativo no desenho final do diploma escolar - 30% na nota final da disciplina no 12º ano; 50% na composição da nota de candidatura ao ensino superior. A parcialidade da ordenação construída com base neste indicador é evidente. E remete-nos para outra dimensão. Os alunos não são marionetas passivas do sistema de ensino; podem usar competentemente as regras do jogo e gerir, em benefício próprio e num ano difícil como o 12º, as diversas cartas do seu baralho escolar - ora para entrar no ensino superior, ora simplesmente para concluir o secundário. As notas do exame não assumem, portanto, a mesma importância em todas as disciplinas. Um exemplo. Um aluno do Agrupamento I que queira ingressar num curso de engenharia informática (específica: matemática) e possua uma média confortável do secundário, pode simplesmente desinvestir do estudo para alguns exames (ex: Química, Biologia); a nota que neles obtiver (0 ou 20) em nada afectará a sua nota da candidatura ao ensino superior. Sobre nenhum destes processos se fala ao falar do ranking das escolas...

O que o ranking faz

A divulgação do ranking tem reforçado a visão apocalíptica da escola portuguesa actual, retrato que contrasta com o de um passado idílico, paraíso perdido onde os professores verdadeiramente exigiam e ensinavam - e os alunos aprendiam.

Argumentos frágeis não suportam um debate sério sobre o sistema de ensino actual. Os níveis de analfabetismo literal, os dados estatísticos sobre a "reprovação" ou os limitados níveis de "conclusões" face a "matriculados", que o sistema português ostentou ao longo de décadas, da primária à universidade, mostram que a realidade do passado não é aquela que hoje se recorda. E permitem reconstituir, com rigor, a memória da escola que tínhamos. A excelência escolar de muito poucos, a exclusão total ou parcial da maioria.

"Trabalhar para o ranking" pode tornar-se um novo e perverso objectivo pedagógico das escolas: selecção subtil dos alunos que entram no 10º ano; não oferta de cursos do ensino tecnológico, onde estatisticamente se concentram os piores resultados académicos; limitação criteriosa de disciplinas de opção problemáticas, em termos dos resultados nos exames; encorajamento à reorientação de curso ou opção, à própria auto-exclusão dos alunos com maiores dificuldades escolares; acentuação de retenções no 10º ou 11º ano como forma de "selecção natural" dos melhores à frequência do 12º ano. Todas estas práticas são expedientes "fáceis" para diminuir os riscos da má prestação da escola - dos seus alunos - no ranking.

Paradoxalmente, penaliza-se o empenhamento contínuo e exigente, mas invisível, de professores que se esforçam estoicamente por agarrar à escola os alunos que têm, que não escolheram, oferecendo-lhes, através dela, um projecto de vida. Apesar de prestações modestas nos exames nacionais. Às dificílimas condições que envolvem esse trabalho junta-se agora o estigma penalizador do ranking. O esforço decididamente não compensa!

Pensar o sistema educativo exige a avaliação das escolas. E não dispensa a sua divulgação pública - cuidada, metodologicamente consistente e atenta à riqueza plural dos contextos escolares. Caso contrário, converte-se num lamentável ritual de execução sumária de escolas. Será legítimo perpetuá-lo?

Com Ana Maria Ribeiro, professoras do ensino secundário, Ana Nunes de Almeida, Fernando Tavares e Maria Manuel Vieira, investigadores universitários, e Benedita Melo e José Resende, professores universitários.

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