Tuesday, October 05, 2004

A Esquerda Contemporânea Por EDUARDO PRADO COELHO

Público
Segunda-feira, 04 de Outubro de 2004

É curioso que a comunicação social tenha tido uma espécie de reticência em relação à fórmula de José Sócrates: "esquerda moderna". O "moderna" aparece quase sempre entre aspas. Que significa entre aspas? Significa que a escolha das palavras (que não é inocente) é da responsabilidade daquele que enuncia e não é assumida pelo interlocutor. Aparece como um operador de distanciamento. Moderna? Como poderia ser "moderna" uma esquerda que traz consigo um cojnunto de personalidades políticas que correspondem ao que de mais retrógrado e asséptico existe no Partido Socialista? A não ser que ela funcione como trampolim para converter o oportunismo serôdio numa política inovadora em todos os planos, desde o modo de organização do partido e a sua relação com o exterior até à política de alianças e os valores civilizacionais defendidos.

Para já, temos de reconhecer duas coisas. Em primeiro lugar, que a forma como Sócrates concebeu a sua intervenção no congresso revela um profissionalismo assinalável. Em segundo lugar, que o discurso que proferiu estava extremamente bem articulado e tinha uma inegável eficácia. Esses vários elementos mostraram que esta vitória foi cuidadosamente preparada. José Sócrates é de uma frieza impressionante. E ao longo desta longa campanha cometeu apenas um erro: a entrevista ao "EXPRESSO". Quanto ao mais, mostrou que poderá ser "guterrista" na medida em que admira o que foi o governo de Sócrates, mas de "guterrista" tem muito pouco: onde Guterres funciona com a emoção, Sócrates dá o lugar de predomínio à razão instrumental: onde Guterres evita o conflito, que manifestamente lhe não agrada, Sócrates cultiva uma certa dureza, que implica demarcações e confrontos; onde Guterres tem valores de raiz cristã, Sócrates é um agnóstico que apenas considera o cristianismo como elemento aglomerador.

Não creio que Manuel Alegre pretendesse vencer. O seu horizonte foi sempre mais moderado. Sejamos claros: a vitória de Sócrates é certamente o melhor argumento para aqueles que, oscilando entre o Bloco de Esquerda (ou, em número mais reduzido, o PCP) e o PS, acabarão por escolher o BE. Donde, quando Jorge Coelho, numa daquelas tiradas em que a retórica triunfa sobre a razão, diz que o BE tem de crescer e aparecer, talvez não suspeite que a razão mais forte para se fazer crescer o BE é um PS liderado por José Sócrates.

A aposta de Manuel Alegre (só parcialmente concretizada) consistia em encontrar dentro do PS razões para votar PS. Tratava-se de fazer emergir na área do Partido Socialista o motivo que levaria os socialistas mais dependentes de uma tradição socialista a não optarem pelo Bloco de Esquerda. É claro que o voto útil, que a atracção do poder, beneficiam com a energia vitoriosa de José Sócrates. Mas os que não querem o poder apenas pela fascinação do poder poderão muito mais facilmente encontrar um espaço favorável no Bloco de Esquerda. Esta tendência será tanto mais premente quanto José Sócrates fôr levado, por pressão do eleitorado centrista a que não consiga resistir, a pôr de lado "as propostas fracurantes" que assumiu durante a campanha.

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