Monday, October 25, 2004

"O Professor Tornou-se Um Pouco uma criada para todo o serviço", entrevista com António Teodoro

Público, Segunda-feira, 25 de Outubro de 2004

O director do Observatório de Políticas de Educação e Contextos Educativos da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias diz que tudo se pede aos professores, que têm não só de ensinar como ser mães e pais, psicólogos, assistentes sociais e polícias. Saber lidar com a diversidade de alunos que estão na escola é o grande desafio. Por Isabel Leiria

Professor aos 18 anos, fundador do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa e primeiro secretário-geral da Federação Nacional dos Professores, António Teodoro tem-se dedicado nos últimos anos à carreira universitária e à investigação em Ciências da Educação. Diz que a escola não pode continuar a "ensinar a muitos como se fossem um só".

PÚBLICO - Em virtude do que aconteceu este ano com a colocação de docentes, mas também com a instabilidade da carreira e as exigências da profissão, acha que os professores são uma classe desmotivada?

António Teodoro - Este concurso foi um verdadeiro desastre e representou um recuo de mais de 20 anos na sua funcionalidade. Mas o mal-estar da profissão docente, que é grande e está estudado, decorre de um conjunto muito complexo de situações. Estes acontecimentos apenas o agravam.

Quais são essas razões mais complexas?

Em primeiro lugar, tem a ver com a própria crise de sentido da escola e do trabalho docente. À escola e aos professores é pedido tudo. Não apenas que respondam às antigas atribuições - ensinar a matéria - mas a todas as outras que resultam do facto de na escola estarem agora todos os grupos sociais. Todos os problemas sociais tornaram-se problemas escolares.

Por exemplo, hoje em muitas regiões há problemas de escolarização com crianças de etnia cigana. Os ciganos estão em Portugal há centenas de anos, mas o problema é novo porque só agora as suas crianças apareceram nas aulas. A sua integração passou a ser um problema escolar.

A escola consegue responder a esses problemas?

Existem quatro grandes instituições socializadoras: a escola, a família, a Igreja e o trabalho. Acontece que todas elas estão com tantos ou mais problemas do que a escola e o professor tornou-se um pouco uma "criada para todo o serviço". Tem de ensinar e tem de ser assistente social, mãe ou pai perante situações de carência afectiva, sociólogo, psicólogo, polícia. Uma pessoa que tem muitas funções sente-se mal em todas elas.

É necessário alterar a formação dos docentes ou a escola deve integrar outros agentes sociais?

As duas coisas. Já não basta que os professores dominem a sua área científica. Mas as escolas têm também de integrar o que designamos por equipas educativas (onde está o assistente social, o psicólogo, o licenciado em ciências da educação), capazes de responder ao conjunto de problemas sociais com que são confrontadas.

Por exemplo, estão a chegar à escola os filhos das primeiras gerações de toxicodependentes, alguns atingidos pelo vírus da sida e em fase final da sua vida. Existem enormes tensões pelo facto de a Europa se estar a tornar profundamente multicultural. Tudo isto tem de ser resolvido com as tais equipas, que vão buscar competências a vários sectores.

Qual é a relação destes alunos com a escola?

A ligação dos jovens à escola também atravessa uma profunda crise de sentido. Há um grande grupo, cada vez mais alargado, que gosta da escola, mas que detesta as aulas, dizem na sua linguagem que "é bué de chato". Não são todos. Há jovens que gostam da Matemática e da Física, que querem ir para a faculdade. Com estes é fácil de trabalhar.

O problema são os outros que, com o alargamento da escolaridade obrigatória, têm de lá estar. Os professores não os podem pôr fora da escola e nem a sociedade aceitava isso, porque iam criar mais problemas sociais do que estando dentro da instituição.

Quem tem de mudar? A escola ou os alunos?

A escola não pode resolver tudo. Tem de haver um reassumir das responsabilidades, por parte das famílias e da sociedade. Não se pode dizer que a escola é a grande responsável por não se ler e depois estarmos numa sociedade que não valoriza a leitura e que dá valor à "Quinta das Celebridades". Pedir à escola que ande em contra-corrente não é possível.

O que deve ser feito?

A escola é uma instituição da modernidade, constituída segundo uma matriz que já não resulta: ensinar a muitos como se fossem um só. O desafio é este: como respeitar a diversidade? Eu tenho direito a ser igual quando a diferença me inferioriza, mas tenho direito a ser diferente quando a igualdade me descaracteriza.

Tem de ser uma instituição igualitária e, ao mesmo tempo, respeitar a diversidade. Foi treinada para dizer: tu tens de ir até ao cimo daquele monte e todos têm de seguir o mesmo caminho. A questão é como permitir que o aluno "gordinho" possa ir mais devagar, o "atleta" mais depressa. A escola lida mal com a diferença e hoje este é talvez o maior desafio.

Existem milhares de candidatos à docência que não conseguem colocação. O ingresso no ensino superior devia ser controlado?

É muito difícil nas sociedades de hoje fazer essa regulação, mas a verdade é que, num curtíssimo espaço de tempo, passámos da existência de professores não habilitados a trabalhar no ensino (anos 80), para 20 mil a 30 mil desempregados nesta área. E continuámos a trabalhar com as estruturas do tempo em que havia falta de professores. Considero verdadeiramente criminoso que haja licenciaturas só para ensinar uma disciplina. Há muito que devíamos ter adoptado um esquema que desse maior mobilidade aos alunos. Eu posso ter uma licenciatura em História, por exemplo, e a partir daí ir para arquivista, bilbiotecário ou professor. Se tirar só ensino de História não posso ir para mais nenhum lado.

A situação contrasta com o que acontece na maioria dos países europeus, onde há falta de professores.

Esses países fizeram a expansão do ensino secundário no pós-II Guerra Mundial. Contrataram milhares de professores que terminaram agora a sua vida profissional. Por outro lado, a profissão deixou de ser atractiva, obriga a um grande desgaste e muitos jovens acabam por desistir. Até porque encontram outras profissões mais bem remuneradas. Na Europa está a recorrer-se a docentes reformados e ao recrutamento no exterior, na Índia, por exemplo.

É previsível essa evolução em Portugal?

Provavelmente. A profissão de professor é extremamente gratificante quando vemos as crianças e os jovens a crescer, mas exige também um grande equilíbrio emocional e uma disponibilidade humana imensa. A crescente diversidade cultural e os choques e indisciplina que daí podem resultar tornam -na ainda mais difícil e é natural que muitos não sintam essa disponibilidade total.

Thursday, October 21, 2004

Google Takes On Your Desktop By DAVID POGUE

STATE OF THE ART

NYT
Published: October 21, 2004


HE modern PC is a marvel, isn't it? Here's a machine that lets an ordinary person with very little training create a new document, check its spelling, dress it up with graphics, send it electronically to someone across the globe - and then save it accidentally into some dark corner of the hard drive, where it will never be seen again.

Of course, every operating system offers a Find command. But the one in Windows is not, ahem, Microsoft's finest work. It requires too many clicks, it asks too many questions, it takes forever, it can't search your e-mail and its results are difficult to interpret. As a final insult, Microsoft endowed the supposedly ultramodern Windows XP with a cartoon dog that appears during the searching, as though to say, "We know this is taking a long time, but hey, watch the puppy!"

Google showed the world what great searching could look like: incredibly fast, blessedly simple, attractively designed. Unfortunately, it could only search the Web. To search your own files, you had to turn, reluctantly, back to Windows and its dog-slow mutt.

No longer. Last week, Google took the wraps off its latest invention: Google Desktop Search. As the name implies, it's software that applies the famous Google search technology to the stuff on your own hard drive. It's free, it's available right now for Windows XP and 2000 (desktop.google.com), and it's terrific.

Like the Windows search program, Google Desktop can find files by name, including photos, music files and so on. But it can also search for words inside your files, including Word, Excel and PowerPoint documents. That's a relief when you can't remember what you named a file, but you do remember what it was about - or when a marauding toddler renamed your doctoral thesis "xggrjpO#$5%////." (Windows offers this feature, too, but it's hard to find, hard to turn on and poorly documented.)

For its final trick, Google Desktop does something so profound it may change the way you think about your PC forever: It can search any Web page you've ever seen, any e-mail message you've opened and the transcript of any instant-message chat you've had.

Why is this such a life-changing feature? Because using a computer these days means being bombarded with far too much information to remember. Google Desktop effectively becomes a sort of aircraft black box for your PC - a photographic memory, as Google puts it. The program can recall any bit of text that ever passed in front of your eyeballs, in a fraction of a second. You don't even have to remember where you read something (e-mail, Web, instant message, document); you have to remember only what it was about.

This feature, as they say in Silicon Valley, is huge.

"All right," you're probably thinking, "down, boy. There's got to be a catch." No, there are no catches. There is, however, quite a long list of footnotes.

For starters, Google Desktop is officially in beta testing, meaning that Google doesn't consider it to be finished. For the moment, its greatest limitation is the list of programs it recognizes. At this point, it can't search Acrobat (PDF) files except by file name. It can't search Web pages you've visited unless Internet Explorer is your browser, chat sessions unless you use AOL Instant Messenger, or e-mail unless you use Outlook or Outlook Express. If you don't use these programs, Google Desktop will seem a lot less essential.

Another consideration: Google Desktop Search is remarkable in the compactness of its code - the entire program fits in a 446-kilobyte download - but installing it requires at least one gigabyte of free hard-drive space. That's because, like similar programs, Google Desktop works by creating what's called an index: a multimegabyte database of the words in all your files. To search vast amounts of material, it needs a healthy swath of space for its index.

Creating its index file isn't what you'd call instantaneous, either. In fact, Google Desktop takes between five hours and all day to build its index. (The instant you start doing work on the PC, the Google indexer immediately backs off. That means your PC never slows down indexing, but it also means that Google Desktop takes longer to index than some of its rivals do.)

Once the index is built, Google maintains it by logging every document and message you open, every Web page you visit and every instant-message session you conduct. Fortunately, Google Desktop's system-tray logo harbors a handy Pause Indexing command, which you can use while you work on something that you'd rather not make searchable (midnight chatters, you know who you are). Like the Snooze button on an alarm clock, it offers to resume indexing every 15 minutes, so you don't forget.

You can fire up Google Desktop for a search in either of two ways. First, you can double-click on its system-tray icon. In a moment, you find yourself in your Web browser, confronting what looks at first like Google.com. But if you type in a search phrase and click on Search Desktop, you get a tidy list of matching items, each identified with a little icon. (When the match is a Web page you've visited, you actually see a miniature picture of it.)

You can click on anything in the results list to open the corresponding file, message, Web page or transcript. The process looks and feels like a standard Google search, a comfortable familiarity that means you have little new to learn.

The other way to use Google Desktop is a little freakier. Whenever you use the regular Google to search the Web, the results list includes a new link that says, "78 more results found on your computer." In other words, whenever you conduct a Google search, your query is sent simultaneously to Google (to search online) and to Google Desktop (to search your PC), for your convenience.

However disconcerting it may be to see results from the Web and from your own computer in such close proximity, Google says that your desktop-only queries and their results are never sent to Google; the fact that Google Desktop does not require an Internet connection supports that assertion.

Speaking of privacy, you can also turn off any of the searchable item types. If, for example, you'd rather not make your Web-surfing sessions available for searching by other family members, turn off that feature. You can also omit only secure Web pages from the log, so that your banking and stock transactions aren't available for recall. (Even so, corporations should carefully consider the security ramifications of Google Desktop's logging features.)

Now, both Microsoft and Apple have announced that their next operating systems (Windows Longhorn in 2006 and Mac OS X Tiger in 2005) will include tools promising the same kind of speedy system-wide searches as Google Desktop; clearly, the Ph.D.'s at Google weren't alone in recognizing that today's searching programs don't cut it.

But already, Google Desktop Search has many rivals. Lookout (www.lookoutsoft.com), for example, is a free- add-on for Microsoft Outlook that can search not only your e-mail but also your address book, calendar, e-mail attachments and even files on your hard drive. Microsoft liked it so much that it bought the company.

There's more power and flexibility to be had in programs like Blinkx (www.blinkx.com, free), Lycos Hotbot Desktop (www.hotbot.com/tools, free), Enfish (www.enfish.com, $50 and $200) and DT Search (www

.dtsearch.com, $200). For example, these programs can search more kinds of files than Google Desktop. Whereas Google searches only your main (C:) hard drive, its rivals can search secondary drives and removable disks (like CD's), and the expensive ones can even search other computers on your network. Most come in free trial versions, so if you're Google-phobic, by all means give them a shot.

You'll learn from the experiment, though: with great power comes great interface clutter. Few of those rivals can touch the familiarity, speed and simplicity of Google Desktop, and they don't offer Google's delicious photographic-memory feature. If you use Windows XP or 2000 - and especially if you use Outlook, Outlook Express, Internet Explorer or AOL Instant Messenger - download Google Desktop Search. You have nothing to lose but Fido the Time-Killing Windows Dog.

E-mail: Pogue@nytimes.com

Wednesday, October 20, 2004

Contributos para a reflexão sobre o papel da universidade, por ELISABETE FRANÇA

DN, 20 de Outubro de 2004

A duração dos cursos superiores está para ser reduzida outra vez em Portugal, com licenciaturas de três anos, na maioria - os mestrados correspondendo, aproximadamente, às actuais licenciaturas bietápicas do politécnico (cinco anos, bacharelato no terceiro). Embora tal medida não vá contra o espírito nem a letra da Declaração de Bolonha (assinada, em 1999, por ministros da Educação de 29 países europeus, o nosso incluído) e até se lhe aproxime, teme-se o pior, face ao estado catastrófico dum sistema capaz de engendrar licenciados(as) que mal dominam a língua materna, saldo de sucessivas políticas educativas desastrosas e desencontradas reformas.

Para além do estado de coisas nacional, a crise na universidade é global, acentuando a pertinência destes livros de ensaios (patrocinados por Coimbra 2003 mas distribuídos há pouco), no âmbito do debate em torno da vocação e do papel da universidade. Debate de incidência social, implicado com responsabilidades de cidadania, onde se defrontam, grosso modo, posições técnico-burocráticas e as que defendem o primado do conhecimento em si - casos dos livros em apreço, cada qual a seu modo. Missão da Universidade e Outros Textos, do filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955), nos anos 30 do século XX, dá um certo background ao que se segue; A Universidade em Ruínas, do britânico, docente de literatura comparada no Canadá, Bill Readings (1960-1994), é uma reflexão de finais do século XX, mais ou menos contemporânea de A Universidade sem Condição, do filósofo francês Jacques Derrida (1930-2004), embora sob enfoque diverso.

Gasset acusava a universidade de ter esquecido a sua missão principal. «A ciência e o profissionalismo deslocaram a cultura», escrevia, entendendo por cultura «o que salva o homem do naufrágio vital» e defendendo uma base cultural geral contra o estrito conhecimento especializado. Visão subordinada a um grande projecto de regeneração cultural, longe da «exigência de impossível» derridiana.

Para a Universidade sem Condição, Derrida reivindica «um espaço de humanidades novas». Ela «deveria permanecer um lugar último de resistência crítica - e mais que crítica [subentenda-se desconstrutiva]», implicando «o direito principal de tudo dizer, a título de ficção e de experimentação do saber, e o direito de o dizer publicamente, de o publicar», bem como um princípio e uma força de resistência - e dissidência - contra a universidade «sucursal de conglomerados e firmas internacionais».

N'A Universidade em Ruínas, «a caminhar para o estatuto de empresa transnacional», a noção essencial de cultura deu lugar à de excelência, técnico-burocrática, vinda do mundo dos negócios, em tentativa de gerir a universidade como um negócio entre outros. Também os professores deram lugar a administradores, a quem os primeiros prestam contas. Concepção enquadrada no movimento de globalização, em que «já não se recorre à universidade para formar sujeitos-cidadãos», pelo que «já não está assegurado o lugar central das disciplinas humanísticas». Contra isso, defende-se a universidade que seja «local entre outros onde a questão de ser-em-conjunto é levantada com urgência».

O Doutor, por Miguel Poiares Maduro

DN, 20 de Outubro de 2004

e-mail:miguel.maduro@curia.eu.int

Por favor, esta semana «escreve algo ligeiro», pediram-me. O problema é que, ultimamente, só me ocorrem ideias «pesadas». Deve ser o peso da responsabilidade, já que a consciência não a tenho pesada. Pensei em aligeirar algo sério mas temia que me chamassem pouco sério. O que se pretendia era algo ligeiro escrito sem ligeireza. Acho que acabei por escrever sobre algo pesado com grande ligeireza.

Somos um país de doutores diz-se. É um equívoco: somos um país de drs. e engenheiros. E está tão vulgarizado que basta entrar num qualquer restaurante desconhecido para obtermos o título: «Sai um bacalhau à Braz para o doutor». Já tenho uns 20 doutoramentos honoris causa concedidos por diferentes restaurantes. Em Portugal, o serviço ao cliente vai ao extremo de nos licenciarem antes de começar a refeição! Mas este dr. não tem doutoramento e a nossa obsessão com títulos é tanta que logo se encontrou uma distinção: quem é doutor por extenso é Professor Doutor, seja ou não professor. E os professores que não são doutores, são apenas «sotores». Substituímos a sociedade de classes pela sociedade de títulos.

Somos «marcados» pelo título. Durante muitos anos em Portugal, ministros só doutores. Um título abre muitas portas em Portugal. Por isso é que não deve parecer (parecer é tudo neste caso) nada fácil obtê-lo. O valor do «título» está no acesso que comporta a um círculo restrito (ser um dos poucos) e na autoridade que comporta («quem fala, fala a título de_»). E nada é mais exemplar a este respeito que o «título» de doutor e a forma como se lhe acede: com uma tese de doutoramento. Eu que sou doutor tenho de saber com certeza_

Em primeiro lugar, a tese de doutoramento deve comprovar a adesão do candidato ao grupo: a sua fidelidade à escola que lhe concede o título. Ao contrário do que afirmam alguns, a tese não tem de constituir uma contribuição original para a ciência. Deve sim consistir numa contribuição original sobre as ideias do orientador da tese (em particular se forem as minhas!). Na medida do possível, o candidato deve abster-se de tomar posição própria, pois tal é sinal de arrogância científica. Pode sim adoptar a posição anteriormente expressa pelo orientador da tese. Se o orientador da tese não tiver posição, o candidato pode adoptar uma posição sui generis. Esta deve congregar elementos de todas as teses anteriores, de tal forma que não possa ser associada a nenhuma nem criticada por se lhes opor. É desejável que o candidato apresente a sua tese (se quiser arriscar ter uma) no meio de 350 outras pretensas teses. Pode ser que, desta forma, a tese passe despercebida.

Em segundo lugar, a tese deve transpirar autoridade científica. Mas esta não resulta das ideias (essas são subjectivas e como tal contestáveis). A autoridade resulta da forma. Desde logo, como ouvi algumas vezes, uma tese deve ter aspecto de tese. Começa com o peso: uns bons cinco quilos são o mínimo aconselhável. Segue-se uma boa organização sistemática. Em Direito, p. e., aconselho a seguinte estrutura: 1) introdução; 2) introdução ao Direito (com referência a elementos de Filosofia, História, Economia e Ciência Política); 3) excurso sobre a importância da definição do objecto da tese; 4) definição do objecto da tese (remissão da sua análise para momento posterior); 5) excurso sobre a importância do instituto jurídico objecto de estudo; 6) introdução ao instituto jurídico estudado; 7) história do instituto jurídico; 8) distinção de todos os institutos jurídicos similares; 9) estudo desses outros institutos; 10) classificação do instituto; 11) categorias e tipos que o compõem; 12) distinção de categorias e tipos similares; 13) distinção entre categorias e tipos (tipos de categorias e categorias de tipos); 14) último capítulo: análise do instituto jurídico em causa (remissão para segundo volume a publicar logo que os nossos trabalhos científicos - leia-se preparação de pareceres - nos permitirem).

Segue-se a linguagem. Deve procurar-se ser o menos claro possível (a clareza é geralmente entendida como um sinal de pouca profundidade intelectual). Ex.: a afirmação «existe, neste caso, um conflito de direitos fundamentais» deve ser substituída por «as jurisdições dos espaços de liberdade normativamente concretizados nas posições jurídicas subjectivas constitucionalmente garantidas estão, neste caso, numa situação de concorrência normativa na prossecução dos objectivos constitucionalmente consagrados».

Particular atenção deve ser dada às notas de rodapé e bibliografia (é por aqui que muitos membros de júris de tese iniciam - e, em muitos casos, terminam - a sua leitura). O texto em notas de rodapé deve exceder o texto do corpo da tese (tal circunstância demonstra que a erudição do candidato excede em muito as fronteiras do tema estudado). Por fim, a bibliografia deve conter todas as obras consultadas (por consulta entende-se a consulta do título em qualquer base de dados existente) e incluir referências a obras nunca antes citadas (de preferência, mas não necessariamente, relacionadas com o tema da tese).

Pouco sério? Apenas uma ligeira provocação para recordar que nem sempre o facto das coisas serem tratadas de forma muito séria é sinal de grande seriedade. O importante não devia ser o título mas a tese. Isto vale para os doutores e outros títulos. Em vez de comparar títulos devemos é trocar ideias.

Tuesday, October 12, 2004

Director da UM tentou comprar jornal na Figueira da Foz José António Cerejo

Público
Quarta-feira, 10 de Fevereiro de 1999

O advogado José Braga Gonçalves, membro da direcção da Dinensino, a cooperativa proprietária da Universidade Moderna, e filho do reitor daquele estabelecimento, fechou um negócio, em Setembro, que lhe permitiria adquirir a maioria do capital de um semanário da Figueira da Foz apontado como o jornal mais crítico em relação ao presidente da câmara local, Pedro Santana Lopes. A compra não chegou a concretizar-se porque o director do "Linha do Oeste", António Tavares, exerceu o seu direito de preferência, enquanto sócio da editora do semanário, a Fozjornal, cobrindo os sete mil contos negociados entre Braga Gonçalves e o sócio maioritário da empresa, Paulo Madureira.

Este empresário figueirense chegou a ter a escritura de cessão da sua quota a Braga Gonçalves marcada para o dia doze de Outubro no primeiro cartório notarial da Figueira e comunicou o facto aos seus sócios no dia 22 de Setembro, por forma a facultar-lhes o direito legal de preferência e a obter o respectivo consentimento para o negócio. Todavia, António Tavares, um professor do ensino secundário, conseguiu reunir os fundos necessários e foi ele a adquirir a quota de mil e quinhentos contos com que passou a controlar a Fozjornal. O interesse de Braga Gonçalves (que o PÚBLICO não conseguiu ouvir) pelo semanário nunca foi entendido pelos actuais sócios da empresa, visto que os seus investimentos na comunicação social nunca contemplaram a imprensa regional.

De acordo com António Tavares, o "Linha do Oeste" é um semanário "independente com uma postura crítica em relação a todas as formas de poder". A atitude do jornal em relação à câmara e ao seu presidente levou, aliás, a que Santana Lopes tivesse posto, em Fevereiro passado, uma acção judicial contra os seus responsáveis, formulando um pedido de indemnização de 40 mil contos. Segundo António Tavares essa queixa foi arquivada pelo Ministério Público.

Santana Lopes, que começou no princípio deste ano lectivo a leccionar Direito Internacional Público II na Moderna, assumiu em Novembro as funções de coordenador do seu Centro de Sondagens, lugar em que substituiu Paulo Portas, actual líder do Partido Popular.

Em declarações ao PÚBLICO, o dirigente social-democrata rejeitou, indignado, a existência de quaisquer ligações entre o facto de ter estabelecido um contrato de prestação de serviços com a Moderna e o facto de um dos seus directores ter pretendido comprar um jornal incómodo para ele. "Nunca participei em nenhuma conversa sobre esse assunto — tive conhecimento dele porque sei o que se passa na Figueira — nem nunca admitiria relacionar um assunto [o seu contrato com a Moderna] com o outro [o negócio do "Linha do Oeste"] porque essa situação nem sequer é concebível e porque prezo muito a minha dignidade", afirmou.

Santana Lopes disse ainda que o contrato que tem com a universidade não colide com o seu estatuto de autarca, porque não tem "exclusividade" na câmara e só recebe meio ordenado conforme a lei prevê. Quanto à Moderna disse que as condições que aceitou são "exactamente as mesmas" de que gozava Paulo Portas e que incluem, além do ordenado, uma participação de 5 por cento nos lucros líquidos anuais do Centro de Sondagens e a utilização de um Mercedes classe E (com um custo, em novo, que varia, consoante os modelos, entre 9 e 20 mil contos). O veículo, disse Santana Lopes, já tinha "cerca de 30 mil kms" quando lhe foi entregue e as condições de cedência prevêem a "opção de compra" no termo do respectivo contrato de leasing.

Sobre as suas funções como coordenador do Centro de Sondagens, afirmou que elas excluem as actividades de gestão e se limitam ao "acompanhamento dos relatórios finais das sondagens e estudos de mercado".

Tuesday, October 05, 2004

A Esquerda Contemporânea (2) Por EDUARDO PRADO COELHO

Público
Terça-feira, 05 de Outubro de 2004

O grande motivo de debate no congresso do PS foi a política de alianças. Depois de uma intervenção perversamente venenosa, segundo o estilo mais sofisticado de Jaime Gama, assistiu-se a uma triste "performance" de Sérgio Sousa Pinto, que parece capaz de tudo para se manter na proximidade do poder - e que instrumentaliza ideias com um cinismo imoderado. Poderíamos considerar que Sérgio Sousa Pinto tinha mudado de concepções políticas, o que é não apenas legítimo como por vezes desejável. Mas esta fúria de neófito justiceiro parece de mau augúrio. A ver vamos.

Sérgio Sousa Pinto, num momento arrebatado, tanto mais arrebatado quanto mostrava total falta de convicção, afirmou: "Não precisamos do Bloco de Esquerda. Não precisamos do PCP. O país não nos pede que façamos alianças à esquerda." Esta frase significa apenas: eu estou a falar em nome do país. Isto é, reencontramos o velho truque retórico de um discurso que se legitima "em nome de" - neste caso, em nome do país. Mas quem disse a Sérgio Sousa Pinto o que o país pede ao PS? Onde é que ele o descobriu? Quando é que foi iluminado pelos deuses da nação?

Vimos também uma entrevista na televisão de Jorge Coelho, depois de um daqueles discursos inflamados que suscitam nos que o ouvem um sorriso que corresponde a afirmar: cá temos nós o Jorge Coelho no seu melhor. Pois na televisão levou os malabarismos ao seu máximo: perguntaram-lhe com quem se coligaria o PS, caso não tivesse maioria absoluta. Ele poderia dizer (como fez Sócrates) que este não era o momento estratégico para colocar o problema. Mas Jorge Coelho preferiu o inverosímil: "O PS vai ter maioria absoluta, nem consigo imaginar que não tenha." "E se não tiver?", insistem; e ele responde: "Mas vai ter, só pode ter." Metia-se pelos olhos dentro que Jorge Coelho só queria afastar a resposta. E o álibi que utilizou é a zona cega desta estratégia de Sócrates. A verdadeira pergunta é: não tendo, como é mais do que provável, maioria absoluta, o PS vai viver de subterfúgios limianos, prefere aliar-se à direita do PP, ou prefere aliar-se à esquerda do BE ou do PCP?

Mas a questão dita "ideológica" não pode restringir-se a estas alternativas. Nem talvez seja suficiente dizer que o PS se distingue pela defesa de mais igualdade. Em primeiro lugar, porque o tema da igualdade raramente aparece nas intervenções. Em segundo lugar, porque a igualdade tem problemas teóricos complexos: igualdade ou equidade? Como conciliar igualdade com liberdade? Entre uma liberdade económica (a liberdade de troca) e uma igualdade social, religiosa, cultural, quais são as complementaridades e quais são as contradições?

Antes de tomarmos qualquer opção, precisamos de fazer um diagnóstico: quais são os princípios que permitem hoje distinguir a esquerda da direita? Porque a esquerda pensa que a esquerda moderna se confunde com a direita. E a esquerda moderna considera que a esquerda tradicional é uma obsoleta esquerda radical (indo mesmo ao ponto de, num momento de projecção fantasmática, achar que a esquerda supostamente moderna é uma defensora de mais Estado). É preciso ultrapassar este enredamento doentio e tentar dizer o que mudou em termos de sociedade (novas formas de pobreza, formas implacáveis de produção de subjectividades, generalização dos valores individualistas, efeitos positivos e negativos da globalização, limites da segurança social, questões da infância e da terceira idade, problemas da imigração, etc.) e o que tem de mudar em termos de Partido Socialista.

A Esquerda Contemporânea Por EDUARDO PRADO COELHO

Público
Segunda-feira, 04 de Outubro de 2004

É curioso que a comunicação social tenha tido uma espécie de reticência em relação à fórmula de José Sócrates: "esquerda moderna". O "moderna" aparece quase sempre entre aspas. Que significa entre aspas? Significa que a escolha das palavras (que não é inocente) é da responsabilidade daquele que enuncia e não é assumida pelo interlocutor. Aparece como um operador de distanciamento. Moderna? Como poderia ser "moderna" uma esquerda que traz consigo um cojnunto de personalidades políticas que correspondem ao que de mais retrógrado e asséptico existe no Partido Socialista? A não ser que ela funcione como trampolim para converter o oportunismo serôdio numa política inovadora em todos os planos, desde o modo de organização do partido e a sua relação com o exterior até à política de alianças e os valores civilizacionais defendidos.

Para já, temos de reconhecer duas coisas. Em primeiro lugar, que a forma como Sócrates concebeu a sua intervenção no congresso revela um profissionalismo assinalável. Em segundo lugar, que o discurso que proferiu estava extremamente bem articulado e tinha uma inegável eficácia. Esses vários elementos mostraram que esta vitória foi cuidadosamente preparada. José Sócrates é de uma frieza impressionante. E ao longo desta longa campanha cometeu apenas um erro: a entrevista ao "EXPRESSO". Quanto ao mais, mostrou que poderá ser "guterrista" na medida em que admira o que foi o governo de Sócrates, mas de "guterrista" tem muito pouco: onde Guterres funciona com a emoção, Sócrates dá o lugar de predomínio à razão instrumental: onde Guterres evita o conflito, que manifestamente lhe não agrada, Sócrates cultiva uma certa dureza, que implica demarcações e confrontos; onde Guterres tem valores de raiz cristã, Sócrates é um agnóstico que apenas considera o cristianismo como elemento aglomerador.

Não creio que Manuel Alegre pretendesse vencer. O seu horizonte foi sempre mais moderado. Sejamos claros: a vitória de Sócrates é certamente o melhor argumento para aqueles que, oscilando entre o Bloco de Esquerda (ou, em número mais reduzido, o PCP) e o PS, acabarão por escolher o BE. Donde, quando Jorge Coelho, numa daquelas tiradas em que a retórica triunfa sobre a razão, diz que o BE tem de crescer e aparecer, talvez não suspeite que a razão mais forte para se fazer crescer o BE é um PS liderado por José Sócrates.

A aposta de Manuel Alegre (só parcialmente concretizada) consistia em encontrar dentro do PS razões para votar PS. Tratava-se de fazer emergir na área do Partido Socialista o motivo que levaria os socialistas mais dependentes de uma tradição socialista a não optarem pelo Bloco de Esquerda. É claro que o voto útil, que a atracção do poder, beneficiam com a energia vitoriosa de José Sócrates. Mas os que não querem o poder apenas pela fascinação do poder poderão muito mais facilmente encontrar um espaço favorável no Bloco de Esquerda. Esta tendência será tanto mais premente quanto José Sócrates fôr levado, por pressão do eleitorado centrista a que não consiga resistir, a pôr de lado "as propostas fracurantes" que assumiu durante a campanha.

O Fim da "Quadra Natalícia" Por TERESA DE SOUSA

Público
Terça-feira, 05 de Outubro de 2004

1. Na semana passada, num seminário organizado pelo Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) e pela Fundação Luso-Americana (FLAD) em torno da crise transatlântica, um dos intervenientes, João Marques de Almeida, resumindo os actuais dilemas europeus, afirmou que o problema da Europa era viver todo o ano "em plena quadra natalícia". O que o orador quis dizer - e que foi dito por outros participantes - foi que a retórica europeia sobre uma ordem internacional multipolar em oposição ao mundo unipolar em que vivemos (mais do que ao unilateralismo da administração americana, que é outra coisa diferente) esbarra com a sua persistente incapacidade para enfrentar os problemas mundiais, velhos e novos, e a nova realidade internacional em que tem de viver.

Sabemos que esses desafios são muitos.

Mais de 70 por cento dos europeus afirmam que a Europa deve ser uma superpotência capaz de ombrear com a América, mas exactamente a mesma percentagem não está disposta a gastar nem mais um cêntimo com a defesa.

Querem preservar a sua riqueza e o seu modelo social, indiferentes a realidades como o envelhecimento acelerado da sua população ou a entrada nos mercados internacionais de potências como a China ou a Índia.

Pregam a abertura ao mundo árabe e islâmico mas as suas políticas em relação ao Magrebe e ao Médio Oriente são no mínimo incipientes e, na prática, pouco relevantes.

Querem aliviar a fome no mundo e ajudar a combater a pobreza, defendendo que está aí, em boa medida, a causa dos conflitos, mas não querem desmantelar a PAC, que asfixia mais do que qualquer outra coisa as possibilidades de desenvolvimento dos países pobres.

Pregam a democracia e os direitos humanos e apresentam-se ao mundo como as referências morais do Ocidente mas defendem, com um assinalável realismo, a manutenção do "status quo" no Médio Oriente à falta de melhor alternativa para as ditaduras do que o fundamentalismo islâmico. E não se importam de obsequiar qualquer déspota africano desde que pertença à respectiva esfera de influência.

Preferem viver, regressando à expressão feliz de Marques de Almeida, em permanente "quadra natalícia", aliás diariamente alimentada pelo discurso da maioria dos responsáveis políticos.

Pode a Europa continuar a viver neste "dolce fare niente"? Não pode. Sobretudo, se quer mesmo preservar o que há de essencial no seu modelo de justiça, de paz e de integração. Pela simples razão de que, mesmo que não queira, o mundo lhe bate à porta e entra sem pedir licença. Sob a forma de perda de competitividade das suas empresas. Com o envelhecimento acelerado da sua população. Através dos problemas de integração dos seus imigrantes e pelas sucessivas vagas de refugiados de todas as misérias que desaguam nas suas margens. Disso se encarrega o caudal de violência insuportável de todos os actuais e potenciais "Darfur", aos quais apenas presta uma atenção intermitente e comedida. Com o terrorismo islâmico, que não faz distinções entre bons e maus ocidentais. Pelo risco real de um choque de civilizações que não se afasta com belos discursos mas com uma capacidade de acção internacional que exige não apenas princípios mas recursos e políticas.

2. Tomemos a questão turca que, talvez como nenhuma outra, simbolize a fragilidade moral e política da Europa.

O "Economist" chamava-lhe uma história de "suspense". Talvez seja, no sentido em que a Europa escolheu, também aqui, a via de olhar para o lado até que o problema lhe rebentasse na cara. Mas o seu desfecho já não constitui dúvida para ninguém.

Na quarta-feira, a Comissão vai aprovar o seu último "relatório de progresso" que, apesar de mitigado, reconhece os esforços significativos de Ancara para responder a todas as exigências da União.

Apesar das tergiversações de alguns governos, os líderes europeus não vão ousar barrar o início das negociações de adesão. Sabem que não têm outra alternativa. Que a sua política dos pequenos passos criou uma engrenagem imparável que apenas pode conduzir a essa decisão. Iludem-se, uma vez mais, ao apostar em que as negociações se arrastarão por tempo indeterminado, adiando de novo o problema.

Suprema ironia, a condição islâmica da Turquia acabou por transformar-se no seu maior trunfo. Fechar a porta na cara a um candidato de longa data que se tem esforçado por cumprir todas as exigências da União podia ser possível se não se tratasse de um país islâmico. Os efeitos dessa recusa seriam devastadores no mundo islâmico, reduziriam a nada toda a retórica europeia sobre o diálogo entre civilizações, religiões e culturas, teriam um efeito negativo nas minorias islâmicas que vivem na Europa e que a Europa precisa de assimilar.

Mas dizer que sim tem um preço igualmente muito alto. Porque desviaram a cara do problema, os governos europeus têm agora pela frente a hostilidade da maioria dos europeus à ideia da integração turca. Não a poderão combater com panos quentes nem tentando de novo retirar a questão da agenda europeia.

3. É certo que a Europa tem vindo a responder, melhor ou pior, às novas circunstâncias internacionais. Alargou-se à dimensão do continente, expandindo a democracia, a estabilidade e a perspectiva de prosperidade até às suas fronteiras. Deu passos no sentido da afirmação da sua identidade política, com novos instrumentos de acção externa e de defesa comum. Está nos Balcãs e está no Afeganistão.

Falta-lhe adquirir uma dimensão estratégica: definir os seus interesses e o seu lugar no mundo e dotar-se dos meios e dos instrumentos necessários para os defender.

Isso implica, como disse o chefe da diplomacia alemã, Joschka Fischer, fazer algumas escolhas importantes. Como, por exemplo, privilegiar o alargamento, incluindo a própria Turquia, em lugar de sonhar com um "núcleo duro" europeu que pudesse continuar paulatinamente a seguir o guião dos velhos federalistas para uns "pequenos Estados Unidos da Europa" - quando a Europa era "ocidental" (no sentido geográfico e não político do termo), homogénea e protegida e o interesse nacional americano se defendia na fronteira de Berlim.

"Antes, eu fazia parte das pessoas que eram 51 por cento a favor da adesão da Turquia mas com 49 por cento de dúvidas. Mudou a minha posição na sequência do 11 de Setembro. Desde aí, tornou-se cada vez mais claro para mim que a integração europeia também tem uma dimensão estratégica." Palavras de Fischer, porventura um dos mais lúcidos políticos europeus, ao "Berliner Zeitung".

A integração turca é uma questão estratégica para a Europa. À qual a Europa tem de responder positivamente, assumindo ao mesmo tempo a sua nova dimensão estratégica. Algo intermédio entre o sonho de um super-Estado europeu e uma superpotência mundial. Com a determinação, os recursos e a capacidade política suficientes para influenciar decisivamente o curso dos acontecimentos mundiais a seu favor. A alternativa é o declínio.

O "Ranking" do Ensino Secundário Por VITAL MOREIRA

Público
Terça-feira, 05 de Outubro de 2004

magine-se uma troca de alunos entre a escola situada no primeiro lugar na lista de classificações dos exames do 12º ano do ensino secundário e a escola que ficou em último. O resultado seria o mesmo? Não são precisos dotes de adivinhação para antecipar que muito provavelmente a primeira escola cairia abissalmente na ordenação e a segunda subiria espectacularmente pela escala acima.

Serve isto para dizer que, sendo seguramente relevantes outros factores - nomeadamente a qualidade e motivação dos professores e a qualidade da gestão da escola, o rigor e a disciplina escolar, etc. -, o mais importante vector singular é porventura constituído pelos próprios alunos. Tudo o resto sendo igual, os resultados de uma escola dependem essencialmente da qualidade dos alunos e o seu desempenho varia substancialmente conforme as suas origens sócio-económicas e o seu percurso escolar, desde a frequência do ensino pré-primário até à qualidade do ensino básico precedente. Falamos obviamente de médias e de regras gerais, que não prejudicam os desvios nem as excepções mais ou menos significativas.

Se reduzirmos o campo de observação às cidades onde existem várias escolas, fácil é verificar que no mesmo município o seu desempenho varia consideravelmente, consoante se trate de escolas frequentadas predominantemente pelas elites sociais (filhos de pais com instrução superior, rendimentos familiares altos, acesso doméstico a livros e meios informáticos, frequência de jardins de infância e ensino pré-escolar, etc.), e as escolas da periferia, frequentadas maioritariamente por alunos oriundos das camadas populares ou dos meios rurais (pais com níveis de instrução básica, se alguma, rendimentos familiares baixos, ausência de livros e de computadores em casa, falta de ensino pré-escolar, ensino básico já problemático).

Tomemos o caso de Coimbra, por exemplo, comparando a escola Infanta Dona Maria, que é a escola pública do país mais bem classificada, sendo frequentada pela elite social da cidade, e a escola Dom Duarte, que aparece situada em 302º lugar, que fica situada na margem esquerda, com uma forte frequência de alunos oriundos das freguesias rurais. É de supor que não existam diferenças substanciais entre elas, no que respeita à sua gestão e à qualidade e estabilidade do corpo docente. Se se quiser uma explicação para a enorme diferença de classificações, isso deve atribuir-se principalmente aos respectivos alunos. A reportagem do PÚBLICO sobre a primeira não deixa margem para dúvidas. A presidente da direcção da escola relata que a escola "está localizada numa zona nobre da cidade e acolhe, principalmente, alunos provenientes de um meio sócio-cultural elevado" e que "os pais vêm trazê-los e buscá-los de carro e muitos têm explicações a várias disciplinas". E uma aluna acrescenta: "Eu tenho explicações a Matemática e a Física (...), mas tenho colegas que têm explicadores particulares para todas - todas! - as disciplinas!" É fácil imaginar a diferença do quadro na escola da outra margem do Mondego...

No mesmo distrito de Coimbra, a par da referida escola pública no topo da classificação, fica também a escola com piores resultados, na Pampilhosa da Serra, uma das zonas mais isoladas e deprimidas do país (há pouco tempo soube-se que estava mesmo em risco de perder as carreiras de transporte público de passageiros...). O panorama da escola e do meio, também descrito na reportagem do PÚBLICO, não poderia ser mais diferente do da bem classificada escola da capital do distrito. Uma boa parte dos alunos provém da zona rural, sendo filhos de camponeses; poucos (se alguns) tiveram ensino pré-escolar; têm de deslocar-se diariamente para ir à escola; em casa são chamados a desempenhar tarefas agrícolas e outros afazeres caseiros, faltando normalmente o ambiente propício ao estudo. A instabilidade do corpo docente é outro "handicap": há disciplinas que chegam a ter três, quatro e cinco professores no mesmo ano; uma parte dos professores vem também de fora, sendo obrigados a fazer muitos quilómetros diários por estradas sinuosas.

Um dos grandes equívocos que todos os anos se exploram é o dos melhores resultados das escolas privadas. Ora, o que se verifica é que as melhores escolas privadas são indubitavelmente os colégios selectos das elites económico-sociais situados em Lisboa, Porto e arredores (nada menos de 14 entre os primeiros 20 lugares da lista), sendo que o colégio de Vila Real que surge em primeiro lugar é pouco significativo, dado o número reduzido de alunos levados a exame. A alta qualidade delas - em geral muito dispendiosas para os beneficiários - tem a mesma explicação que a da excelente escola de Coimbra, a que acresce muitas vezes a selecção dos alunos, o que está vedado às escolas públicas. De resto, o que é a admirar nos seus resultados é que estes não sejam melhores do que são, pois se se retirar a referida escola de Vila Real, nenhuma delas atinge os 14 valores de média, o que não é propriamente famoso.

Para além dessas escolas, que constituem um grupo à parte, o panorama das demais escolas privadas não é melhor do que os das públicas, pelo contrário. Assim, entre as 100 escolas mais mal classificadas, contamos nada menos de 20 privadas (20 por cento), o que fica acima da quota de escolas privadas no ensino secundário, que é de 18,5 por cento (112 escolas num total de 608). Ou seja, as escolas privadas obtêm os melhores resultados mas também os piores. Ora essa grande assimetria - que é ainda maior do que nas escolas públicas - só pode dever-se aos mesmos factores que explicam a assimetria das escolas em geral, sejam elas públicas ou privadas. Uma escola privada na Pampilhosa da Serra faria muito melhor do que a referida escola pública? Por isso, o argumento da superioridade das escolas privadas, só por o serem, é uma grande mistificação. Há certamente muito que corrigir na escola pública, quanto à gestão, disciplina, rigor, autonomia e responsabilização, avaliação, etc. Mas a comparação entre escolas só poderá fazer-se em igualdade de circunstâncias, desde a composição do corpo discente à percentagem de alunos submetidos a exame nas disciplinas mais problemáticas (nomeadamente Matemática e Português).

Como seria de esperar, é também nestas alturas que aparecem os campeões do ensino privado a defender o financiamento público das escolas privadas, bem como a liberdade de escolha dos alunos, sempre em nome da liberdade de ensino. Trata-se de outra propositada confusão. Entre nós, é livre a criação de escolas privadas, cuja frequência é igualmente livre, sendo o seu ensino publicamente reconhecido. Mas o Estado não tem nenhum dever de financiar as escolas privadas, nem deve fazê-lo à custa do financiamento das escolas públicas, que são uma responsabilidade constitucional sua. Em Portugal, o ensino público é um direito, o ensino privado uma liberdade. O Estado tem de garantir a toda a gente a escola pública, plural, não confessional, em igualdade de circunstâncias. Quem preferir as escolas privadas, por razões confessionais ou outras (designadamente de prestígio social), não pode invocar um direito ao pagamento do Estado. O Estado também não tem de pagar por exemplo a quem, tendo direito a serviços públicos de saúde gratuitos, prefira uma clínica privada; ou a quem, tendo transportes públicos subsidiados pelo orçamento, prefira viajar em transportes particulares. O financiamento público das escolas privadas, para além de desviar recursos das escolas públicas, que bem precisam de ser melhoradas, e de ser financeiramente incomportável (dado que o Estado não poderia reduzir correspondentemente o financiamento das escolas públicas), traduzir-se-ia sobretudo em subsidiar um privilégio dos mais ricos.

Professor universitário

Tolerância de Ponte Por JOSÉ VÍTOR MALHEIROS

Público
Terça-feira, 05 de Outubro de 2004

Lembram-se da discussão sobre o grau de alcoolemia permitido aos condutores? Lembram-se da campanha dos produtores de vinho (e não só) para lutar contra aquilo que consideravam um ataque aos vitivinicultores, um insulto aos enólogos e uma afronta a um milhão de portugueses e ao próprio Baco? Era inútil tentar explicar que a lei não pretendia impedir ninguém de despejar dois litros de vinho pela goela abaixo a cada refeição, caso o desejasse, mas apenas proibir de conduzir quem o fizesse. Em rigor a questão não seria pois "agora já nem nos deixam beber", como o "lobby" vínico indignadamente pretendia, mas sim "agora já nem nos deixam conduzir". Mas ninguém parecia interessado em ver a questão pelo ângulo da restrição da condução, já que o direito a sentar-se ao volante é, para muitas pessoas, algo mais inalienável do que o direito ao voto.

Uma reacção parecida espreita quem tente contestar junto de um funcionário público a "tolerância de ponto" que o Governo entendeu decretar. A questão não é se um funcionário público pode ou não fazer uma ponte de vez em quando, mas sim se precisa que lhe ofereçam um dia de descanso suplementar para esse fim. É absolutamente razoável que um trabalhador queira aproveitar um feriado a uma terça-feira para gozar um fim-de-semana prolongado - se a organização do seu trabalho o permitir. Mas nesse caso que faça o que é razoável: gaste um dia das suas férias para fazer a ponte. O que teria como vantagem (considerando que nem todos poderão ou quererão fazê-lo) que os serviços poderiam continuar a funcionar. O que é completamente descabido é que, na actual situação do país, o Governo decida que os funcionários públicos (e, por arrastamento, muitos outros trabalhadores, em sectores que imitam a prática do Estado ou dele dependem para a sua actividade quotidiana) possam reduzir os seus dias de trabalho e paralisem por um dia toda a função pública (com mais eficácia que uma greve). Será que na educação, na administração fiscal, na justiça ou na saúde o Governo considera que os resultados são tão bons que o país se pode permitir este bónus?

A "tolerância de ponto" é uma dessas expressões de "newspeak" que faz as delícias dos políticos. A expressão reserva a melhor imagem para quem decide (fonte de tolerância), transferindo o eventual ónus para quem escolhe beneficiar ou não dessa tolerância e gozar ou não um feriado extra. É evidente, porém, que uma das principais razões para decretar esta "tolerância de ponto" reside na confusão que ainda reina nas escolas, a braços com professores por colocar. O caos escolar poderá ser camuflado por mais dois dias, mas isso não torna a decisão mais aceitável. Para melhor desviar as atenções, o Governo fez mesmo questão de dizer que as escolas podiam abrir as suas portas, se assim quisessem (desresponsabilizando-se hipocritamente de mais este adiamento no início das aulas), mas é indiferente que as escolas abram os portões, quando os professores não aparecem, gozando o privilégio que lhes foi concedido pelo próprio Governo. (Na realidade, é pior ainda, já que isso obriga os alunos a deslocar-se à escola, em vão, e não lhes permite nem ter aulas nem gozar a "ponte".)

O que é triste é que, mais uma vez, os sindicatos de professores tenham entendido saltar no ar para apanhar esta cenoura, em vez de denunciar a medida como o que ela é: mais um gesto populista, que pode ser agradável por um dia, mas é má para o país, para a função pública, para as escolas e para os alunos. Se os funcionários públicos queriam dar de si mesmos uma imagem de responsabilidade e de empenhamento cívico, perderam uma excelente oportunidade.

É sabido que a direita neoliberal se preocupa pouco com o desempenho do Estado, pois a ineficiência do sector é um excelente pretexto para privatizar serviços (saúde, segurança social, educação) ou para reduzir o seu âmbito com base no alto custo. Mas ver sindicatos pretensamente de esquerda a alinhar nestas manobras dá-nos a medida do desconcerto reinante.

«Solução informática está errada»

DN, 5 de Outubro de 2004

SOFIA JESUS
O «algoritmo milagroso» desenvolvido pela empresa ATX Software, que permitiu finalmente a divulgação das listas de colocação de docentes no dia 28 de Setembro, está «errado» e, «em teoria, poderá afectar todo o universo do concurso nacional». A garantia é dada por Augusto Pascoal, especialista em concursos de docentes há 28 anos e membro da Federação Nacional de Professores (Fenprof), que alerta ainda para o facto de a aplicação futura desta solução informática colocar em risco o concurso do próximo ano lectivo. O Ministério da Educação (ME) discorda e assegura que «o algoritmo está correcto», lembrando que os próprios sindicatos do sector consideraram que a lista estava «no limite do razoável» e não pediram a sua anulação.

Segundo Augusto Pascoal, ao contrário do que defende a nova legislação, a solução informática «criada de emergência» pelo ME para salvar o ano lectivo «não permite a recuperação automática das vagas de modo transversal», como o exige a nova lei, mas antes «e, presumivelmente, em blocos», dando origem à persistência daquilo que «muito provavelmente serão milhares de erros» na colocação dos docentes. «A dimensão das consequências da aplicação deste algoritmo é enorme e torna difícil ao candidato saber se foi ou não prejudicado, porque não há controlo sobre a recuperação de vagas», afirmou ao DN Augusto Pascoal, que, no entanto, se recusa a pedir a anulação do concurso deste ano, «devido aos atrasos que isso traria ao ano lectivo».

Ao DN, fonte oficial do ME garante que o algoritmo «faz essa recuperação transversal» das vagas e questiona: «Se os erros chegam aos milhares, por que razão a Fenprof, até agora, só nos apresentou 13 casos?» Confrontado com as declarações da tutela, Augusto Pascoal reitera a sua «análise pessoal», feita a partir dos casos de reclamações que lhe chegam: «Garantidamente, o programa não faz essa recuperação.» Quanto aos recursos, lembra que estão ainda a ser verificados pelo sindicato.

Como explicou este professor de Matemática, até agora a recuperação das vagas de quadro era feita automaticamente, prioridade a prioridade. Em primeiro lugar estavam as movimentações de professores do quadro, que requeriam vários tipos de destacamento. A recuperação da vaga fazia-se, assim, automaticamente, quando um professor do quadro, ao movimentar-se, libertava a sua vaga, que acabava por ser ocupada por outro.

A diferença, de acordo com este especialista, é que o novo decreto-lei - n.º 35/2003 - estabelece que «o concurso se faz com recuperação automática das vagas, para que nenhum professor seja ultrapassado nas suas prioridades». Isto é, coloca no mesmo «bolo», «os professores que concorrem a destacamento por condições específicas - doença do próprio ou familiar próximo -, a afectação dos docentes dos Quadros de Zona Pedagógica (QZP), a preferência conjugal e, por fim, os outros destacamentos - como os relacionados com projectos educativos desenvolvidos nas escolas».

«O que sucede é que a afectação, que envolve 36 mil docentes, está entre os destacamentos por condições específicas e a preferência conjugal. O que obriga a uma maior movimentação, em efeito dominó, nas colocações», esclarece. E, reafirma, «esta recuperação transversal de vagas não é feita pelo actual programa», que só recupera automaticamente as vagas, em cada prioridade, «de modo horizontal».

Apesar do problema - que a tutela assegura não existir - Augusto Pascoal salienta que a opção do ME em contratar uma empresa externa para desbloquear o programa informático criado pela Compta - encarregue do concurso -, constitui «uma louvável iniciativa», sem a qual o ano lectivo não poderia começar. No entanto, avisa, trata-se de uma «solução de barro», pois não «resolve o problema de fundo» e, a ser utilizada no futuro, «põe em causa o concurso do próximo ano». A prová-lo, diz, estão os erros detectados. «Os tribunais vão ficar inundados de recursos. Isto nunca estará resolvido em tempo útil», lamenta, lembrando que, quando as decisões judiciais saírem, já estará a decorrer o próximo concurso.

Sunday, October 03, 2004

'Halt science decline in schools', Professor Colin Pillinger

http://news.bbc.co.uk/2/hi/science/nature/3710906.stm

The professor wants people from "all walks of life" to take an interest
Britain will run out of world-leading scientists unless the lack of interest shown in science education is reversed, one of the UK's top academics has said.

Professor Colin Pillinger, who led the Beagle 2 mission to Mars, said he was worried about the falling interest in science in schools.

Figures for this year show the number of students taking A-level sciences fell by 6.5%.

"All the indicators are going in the wrong direction," he said.

"We are a vanishing breed if we don't have people coming through the system.


If you want kids to study science their parents have got to be interested as well

Professor Pillinger

"We need two things. We need both quality and quantity. If we don't have the quantity the chances of getting the quality are very much diminished.

"You really need a lot of people doing science in order to get a proportion of Nobel Prize winners in the future."

But the Open University professor also said he received a lot of letters from schools asking him to talk to children about the Mars mission.

"If you want kids to study science their parents have got to be interested as well," he said. "Beagle demonstrated that everybody is interested right across the spectrum."

'Central priority'

Professor Pillinger urged ministers to do more to keep Britain in the forefront of scientific discoveries and to promote space exploration.

A spokesman for the Department for Education and Skills said science was a "central priority" for teaching 11-14 year-olds, after figures showed science test results were down this year.

"We will be retaining this focus in order to improve performance next year after the unexpected fall in this year's results," he said.

"We are addressing the need to recruit and retain science teachers."

Colocados com Os Pés... Por ANTÓNIO BARRETO

Público
Domingo, 03 de Outubro de 2004

sabido que palavras a mais cansam. Que a repetição de imagens na televisão anestesia. Que os protestos excessivos acabam por ter o efeito contrário, o de tornar as pessoas insensíveis. E que a sucessão de manifestações de revolta cria uma espécie de imunidade das consciências e das emoções. Mesmo assim, o que se passou nestas últimas semanas, com a colocação de professores, consegue ainda hoje, pousada a poeira, provocar a estupefacção. Não me sai da memória aquela imagem do professor belga que, informado dos desastres portugueses, apenas podia articular uns espantados "É inconcebível", "É inimaginável"! O que na verdade se passou foi um dos pontos mais altos da degradação social em que vivemos. Aflige o desprezo a que são votados pais e famílias, alunos e professores, por um sistema administrativo refém de sindicatos, cativo de ministros e servo funcionários arrogantes, convencidos das suas construções intelectuais e políticas e obcecados com os seus privilégios.

Não sei, nem me interessa muito sabê-lo, se este foi o pior ano de todos. Foi certamente um dos piores. Mas não esqueço, nestes últimos trinta anos, outros desastres semelhantes. Como recordo também falhanços talvez menos caricatos na televisão e menos visíveis na praça das emoções públicas. Muitas vezes o desastre era mais discreto ou mais simples. Ou antes, apenas visível nas centenas de escolas a que faltavam professores até Dezembro ou Janeiro. Nos milhares de alunos, dispersos pelo país, com "furos" nos horários até muito tarde. E nas centenas de milhares de alunos só com aulas de manhã ou de tarde. Lembro-me de tudo. Por isso, a tão especial imbecilidade deste ano surge apenas como mais uma. Este género de competição que consiste em saber quem foi o pior, numa situação permanente e globalmente deficiente, constitui fonte de engano. Na verdade, para se ter chegado aqui, a responsabilidade é realmente do "sistema" e das luminárias que, no ministério e nos sindicatos, o inventaram e administraram durante décadas. O "sistema" está errado nos seus fundamentos. Repará-lo é inútil. Substitui-lo é urgente. Mas podemos ter a certeza de que, passado o tumulto, toda a gente se vai esforçar, preguiçosa e arrogantemente, por reparar o irreparável. Até um dia...

O mais grave de tudo isto é a aniquilação da escola como instituição responsável, dos pais como parceiros indispensáveis, das comunidades locais como primeiros interessados, dos professores como profissionais dignos e dos alunos como destinatários. Penoso é verificar a inexistência de uma autoridade na escola e ver que esta entidade é incapaz de, em Abril ou Maio, ter totalmente preparado o seu ano lectivo seguinte, incluindo o corpo docente, os manuais escolares, os horários fixos e estáveis e as obras de Verão planeadas. Doloroso é observar a miserável proletarização de professores que, durante dez ou vinte anos, andam de sítio em sítio, com efeitos nefastos para si e suas famílias, mas sobretudo para as escolas e as comunidades. Irritante é perceber, mais uma vez, que, ao longo do ano, problemas semelhantes se repetem com professores doentes ou faltosos não substituídos, com a impossibilidade de uma escola escolher os seus professores e assegurar a necessária estabilidade do quadro docente. Confrangedor é ainda perceber que, por entre destacamentos, requisições, transferências, regimes especiais e atestados médicos de conveniência, se instalou no sistema, aparentemente neutro e impoluto, a corrupção, o despotismo burocrático e o caos organizativo. É, finalmente, impressionante, verificar o ódio e a repulsa existentes, em Portugal, contra as instituições livres e responsáveis! E não se pense que as consequências deste estado de coisas se reflectem apenas ou sobretudo nas colocações de docentes e na desordem administrativa. Os verdadeiros resultados estão aí, uma vez mais, bem visíveis, nos resultados das escolas e respectiva classificação. A competição entre público e privado é uma questão secundária. Lamentável e grave são as médias das escolas e das disciplinas. Quase dois terços das escolas secundárias do país (num total de mais de 600) têm médias globais negativas (inferiores a 10 valores) no conjunto das oito principais disciplinas, incluindo Português, História, Matemática, Química, Biologia e Física! Alguém perceberá que são gerações inteiras perdidas? Que este panorama de catástrofe é irrecuperável antes de dezenas de anos? Como é possível que todo um país, das indiferentes burguesias aos distraídos professores e das inexistentes elites aos vorazes empregadores, não reaja contra este estado de coisas?

O país tem professores suficientes. Talvez até a mais. Os orçamentos de Estado, mais milhão menos milhão, chegam. Os edifícios também. Esses não são os problemas. Se alguém pretender encontrar soluções é aí que as deve procurar. Quando perceberão os responsáveis (ministros, funcionários, professores...) que necessitam de diversificar os modelos de gestão? Que as escolas devem ser dirigidas por um director nomeado e contratado por alguns anos? Que a escola deve ser responsável pela selecção e pelo recrutamento dos seus professores? Que cada escola deve anunciar, em Maio, o seu corpo docente, os seus horários e os seus manuais escolares? Que os professores devem ser contratados por vários anos e obter a estabilidade ao fim de um ou dois contratos? Que todos os alunos devem ter horários diurnos completos, de manhã e de tarde, incluindo tempo de estudo e actividades organizadas? Que as escolas devem ser entregues às autarquias, ficando o ministério com as responsabilidades do currículo nacional, da inspecção e do planeamento financeiro nacional?

E se, em vez de usar o computador ou de o fazer à mão, colocassem os professores com a cabeça? Talvez não fosse má ideia.

Saturday, October 02, 2004

"Regresso às Aulas" e Liberdade de Educação Por FERNANDO ADÃO DA FONSECA

Público
Sexta-feira, 01 de Outubro de 2004

Luís Salgado de Matos, no seu artigo "Regresso às aulas" do passado dia 20 de Setembro, dizia o seguinte: "Deveremos mudar de alto a baixo as escolas portuguesas e reconhecer aos pais o direito de optar livremente entre qualquer delas?" Estava à espera de um "sim" muito claro. Em vez disso, o autor começou por dizer que a frase entre aspas é do Fórum para a Liberdade de Educação e expôs um conjunto de ideias que interpretam mal o que defende este Fórum. Vejamos o essencial.

1. A dita frase é nossa, mas resulta directamente da Declaração Universal dos Direitos do Homem (n.º3 do art.º 26º), quando diz que "aos pais pertence a prioridade do direitode escolher o género de educação a dar aos filhos", e da própria Constituição da República Portuguesa (n.º1 do art.º 43º), quando diz que "é garantida a liberdade de aprender e ensinar". Trata-se, por isso, de um direito fundamental e inalienável de todo e qualquer cidadão. Só os inimigos da liberdade são contra os direitos fundamentais.

2. Nós defendemos uma concepção de escola pública que retira racionalidade à contraposição entre escola estatal e escola privada. Para nós, é errado e antidemocrático ajuizar o serviço prestado pelas escolas em função da sua titularidade estatal ou privada, pois o valor do serviço prestado por uma escola não varia em função do seu dono, mas sim, e apenas, do serviço que é efectivamente prestado. Para nós, só tem sentido diferenciar o serviço de educação entre dois tipos de escolas: escolas públicas e escolas independentes.

3. Um primeiro tipo é constituído pelas escolas que devem constituir a "rede de serviço público de educação". Estas escolas têm de estar abertas a todos os cidadãos, assegurando em conjunto o direito de educação a todos os cidadãos sem excepção. O custo de educação, assumido na sua totalidade pelo Estado, deverá, portanto, ser o mesmo em todas estas escolas, quer sejam estatais ou não.

4. Mais concretamente, devem incluir-se neste grupo, para além da generalidade das escolas do Estado, todas as escolas que desejem fazer contratos de serviço público de educação (é o caso dos já existentes contratos de associação), significando isso aceitar as mesmas regras de gratuitidade e dando preferência aos alunos que pertencerem ao mesmo agregado familiar, aos residentes da área e aos de menor idade. À semelhança do que acontece, por exemplo, com os transportes, que são designados por "públicos" quando estão abertos a todos os cidadãos a um preço igual para todos, o Fórum defende que as escolas estatais e privadas que satisfaçam este requisito sejam designadas por "escolas públicas".

5. Deixaria de haver monopólios de qualquer espécie, como existem neste momento, a nível local e não só. É por existir monopólio no sistema actual que a qualidade da educação é tão má, prejudicando o futuro dos portugueses, e, portanto, enfraquecendo o nosso futuro como nação. Com a abertura da "rede de serviço público de educação" a toda e qualquer iniciativa que cumprisse os seus requisitos de entrada, a concorrência (obviamente regulada pelo Estado) encarregar-se-ia de garantir que as escolas sem qualidade desapareceriam. Mesmo onde existisse uma única escola, haveria sempre a possibilidade de ser criada uma escola ao lado que concorresse com essa. Haveria aquilo que se chama "concorrência potencial", que é o mínimo que sempre se deseja em qualquer situação.

6. Um exemplo que conheço bem poderá ajudar a perceber o que isto significa. Numa zona suburbana da cidade de Lisboa, existia (e existe ainda) uma determinada escola que funciona com péssima qualidade, por razões várias, especialmente por má qualidade da sua direcção e gestão. Um grupo de professores dessa escola estava disposto a criar uma escola de raiz na zona, assumindo o risco total do investimento. Apenas pediam ao Estado que lhes pagasse por aluno que optasse pela nova escola exactamente o mesmo que o Estado paga à outra escola. A resposta do Estado foi "não", perdendo os alunos daquela zona a possibilidade de terem uma educação de qualidade. Em vez disso, a escola antiga continua a atirar para a sociedade rapazes e raparigas sem futuro e sem formação cívica.

7. Um segundo tipo é constituído pelas escolas que designamos por "independentes". São as escolas que, embora prestando também um serviço educativo de interesse público, designadamente cumprindo os conteúdos educativos mínimos obrigatórios a nível nacional, pretendem total autonomia de selecção de alunos e de estrutura curricular ou de definição dos valores das propinas muito para além do valor suportado pelo Estado e, por isso, não fazem parte da "rede de serviço público de educação". Na medida em que estas escolas não se obrigam a assegurar o direito de educação a todos os cidadãos sem excepção, a participação pelo Estado no custo da educação, a existir, deverá ser inferior ao valor pago nas escolas anteriores.

8. Como é evidente, competiria ao Estado garantir que todas as escolas cumprissem os requisitos mínimos de uma educação de qualidade, incluindo em relação aos valores transmitidos, não autorizando, por exemplo, estabelecimentos de ensino com valores ditos "extremistas" de qualquer tipo.

No nosso sítio na Internet - www.liberdade-educacao.org - explicamos em maior detalhe o que tem sido o nosso combate civilizacional pela liberdade de educação. Sem esta liberdade, o serviço público de educação não estará verdadeiramente democratizado. Sem autonomia das escolas e sem concorrência entre elas, não há qualidade. Não haverá igualdade de oportunidades. Portugal será um país irremediavelmente atrasado, onde serão os mais fracos a mais sofrer. Os inimigos da liberdade não irão, certamente, lutar contra os equívocos que perduram no nosso sistema educativo.

Presidente do Fórum para a Liberdade de Educação

Esta Gente Por MIGUEL SOUSA TAVARES

Público
Sexta-feira, 01 de Outubro de 2004

"Esta gente cujo rosto

Por vezes luminoso, outras vezes tosco

Ora me lembra escravos, ora me lembra reis..."

Sophia de Mello Breyner Andresen

Choraram-se lágrimas hipócritas pela vitória esmagadora de José Sócrates no Partido Socialista. Choraram-nas as vestais do templo socialista, para quem Sócrates desvirtua a esquerda, os seus nobres valores e as suas sabidas realizações pelo bem comum. Choraram-nas à direita que, coitada, se sente agora órfã de esquerda e que comunga das dores "socialistas" por ver chegar à direcção do PS um homem que trocou "os valores" pelo "pragmatismo".

Em suma, Sócrates é acusado por um dos lados e temido pelo outro porque, sem cerimónias, se assumiu como candidato a tomar o poder e derrubar este Governo até 2006. E, ao que parece, o poder é pecado e a missão ingente de apear o Governo de Santana Lopes não é, em si mesma, tarefa digna e suficiente.

Tivessem sabido o que eu fui sabendo esta semana, sobre o assalto geral aos lugares do Estado e das empresas públicas por parte de um rol de incompetentes e oportunistas, amigos do ministro Fulano ou Beltrano, santanistas de sempre ou da 25ª hora, e entenderiam que nada é mais urgente do que o êxito da missão de Sócrates. Tivessem reparado em como as notícias que interessam ao Governo vão aparecendo colocadas estrategicamente em certos jornais, como os "ministros fortes" atacam os fracos e os 'lobbies' de apoio a cada ministro vão marcando o seu terreno através das agências de comunicação e imagem de que cada um dispõe, tivessem notado a arrogância snob da ministra da Educação face ao drama humano em que a incompetência do seu ministério colocou centenas de milhares de professores, alunos e pais, tivessem tomado conhecimento da preocupação do primeiro-ministro em encontrar um forte do Estado à beira-mar para os seus tempos livres, e perceberiam que a missão não consiste apenas em mudar de Governo mas em mudar de gente. Não é, sequer, a composição política do Governo que está em causa: é esta gente. Foi isso que Jorge Sampaio não compreendeu.

Ao contrário do que muitos escreveram, o que a direita mais pretendia era um secretário-geral do Partido Socialista que nem sequer se assumisse como candidato ao lugar de Santana Lopes. Que fizesse do regresso aos valores "históricos" do socialismo e da cedência à eterna tentação de atrelar o que resta do museu leninista do PCP uma tarefa mais urgente e mais nobre do que a de derrubar esta maioria e substituir um governo de negociantes da coisa pública por um governo de servidores da coisa pública. A direita teria adorado acordar no sábado passado com um PS dirigido por alguém que, com todas as boas intenções do mundo, afugentaria para as calendas de 2010 todo e cada um do tal milhão de eleitores flutuantes que decidem as maiorias e os governos.

Mas, se isso não fosse, por si só, bastante, há também a diferença entre o que se proclama e o que se realiza. Sócrates foi um dos raros socialistas convictamente contra o bloco central; foi membro dos Governos de Guterres, dos quais o primeiro foi um governo de realizações sociais concretas e positivas, e do qual não fugiu na hora do aperto, como algumas flatulantes importâncias que por aí se exibem; foi o primeiro secretário de Estado do Consumidor que ousou afrontar e pôr na ordem alguns poderes estabelecidos que se julgavam com direito de ditar as regras dos negócios de que eram parte; e foi um excelente ministro do Ambiente, com razão em tudo e sobretudo no projecto da co-incineração, derrotado, sem a mais pequena razão científica ou política, por Manuel Alegre.

Mas, seja qual for o ponto de vista pelo qual se olhe, sobra uma coisa incontestável: com José Sócrates, vai regressar a oposição socialista, que há mais de dois anos não existia e cuja ausência, aliás, constituiu a única razão compreensível para que Jorge Sampaio tenha aceite caucionar o golpe de Estado palaciano e partidário que nos deu em sorte Santana Lopes como primeiro-ministro e Durão Barroso em eufórica fuga às suas responsabilidades.

2. Ontem, o PÚBLICO noticiava que "a solução imaginativa" que Santana Lopes congeminou, como presidente da CML, para ajudar a resolver o problema de o Benfica construir um estádio novo sem dinheiro, já custou, até agora, perto de oito milhões de contos à EPUL (isto é, à Câmara de Lisboa), sem qualquer retorno. Durante mais de um ano, andei a escrever sobre este "negócio de interesse público", como lhe chamou Santana Lopes, e cujos pontos mais chocantes consistiram em a CML pagar ao Benfica seis milhões de contos por uns terrenos que eram da própria Câmara e que esta tinha doado para a construção de instalações desportivas que não haviam sido feitas, e ainda lhe dar, "cash", mais 2,5 milhões de contos, antecipados e a título de metade previsível dos lucros da venda de uma urbanização que a EPUL iria construir, inteiramente a expensas suas.

Esta semana também, ficou a saber-se que o sr. Stanley Ho vai arrancar com as obras do futuro Casino de Lisboa, em terrenos camarários e através de uma autorização extraordinária do Conselho de Ministros, como contrapartida de ele ajudar a financiar os futuros teatros do Parque Mayer - onde Santana Lopes não conseguiu apresentar uma ideia nem um projecto definitivo e de que nem sequer conseguiu que a CML detivesse a propriedade. Ou seja, o mais provável é nem sequer vir a haver Parque Mayer da câmara, mas haverá certamente casino do sr. Ho. E acabarão a vender-nos a ideia de que o casino, por si só, é um benefício para a cidade.

E, quanto ao túnel do Marquês, que fecha a trilogia inesquecível da obra realizada por Santana Lopes em Lisboa, nem vale a pena falar, porque a imagem do "futuro em marcha" está aí, diariamente a ser visto e sofrido por milhares de lisboetas.

Tudo isto só foi possível, recorde-se, por vontade popular. Foi a gente de Lisboa que quis experimentar Santana Lopes à frente dos destinos da sua cidade. Acreditaram que ele era o homem certo para a tarefa, que certamente levaria até ao fim, deixando Lisboa melhor do que a encontrara. Isso deve dar-nos que pensar. Isso e as incríveis circunstâncias em que João Soares conseguiu, depois da excelente obra que fez, a impossível proeza de perder a eleição. Só mesmo por delírio voluntarista é que ele conseguiu dizer agora aos militantes do PS que era "o melhor candidato para derrotar Santana Lopes em 2006".

3. Uma vez mais, os médicos de Bragança prestaram-se à indecente atitude de assinar falsos atestados de saúde para permitirem que professores ultrapassassem outros nas colocações, invocando a necessidade de prestarem assistência a familiares pretensamente doentes. Já há dois anos atrás os mesmos médicos de Bragança tinham inundado o Ministério da Educação com uma epidemia de atestados, jurando que quase todos os alunos do 12º ano do distrito estavam incapacitados de poderem concorrer à 1ª chamada dos exames. A investigação subsequente acabou, como é de costume, em nada. Agora, gostava de saber o que terá a dizer algum desses médicos ou desses professores batoteiros ao leitor José Alegre Mesquita, de Carrazeda de Ansiães, que ontem aqui escrevia que, por se ter recusado a seguir o mesmo expediente, terminara por, pela primeira vez em 24 anos de professor, ser colocado fora do seu local de residência, em benefício de um dos portadores de falsos atestados. Como bem perguntava o leitor, será que o Sindicato dos Professores e a Ordem dos Médicos vão manter o silêncio sobre esta vergonha? Que médicos são estes que não têm pudor de jurar em falso, sabendo que estão a prejudicar terceiros de boa-fé? Que professores são estes a quem não dói a consciência por ultrapassarem colegas que se recusaram, como eles, a usar da mentira e da deslealdade? Que valores vai esta gente ensinar em suas casas ou nas suas escolas?

4. Tal como Pacheco Pereira, também eu fiquei enojado e deprimido com as imagens dos populares de Figueira, exigindo justiça pelas suas mãos contra os supostos assassinos da pequena Joana, clamando pelo regresso da PIDE, e arrastando-se, dia após dia, numa exibição de voyeurismo e falsa indignação perante o olhar ávido das câmaras de televisão. Tal como o José Pacheco Pereira, também eu digo que por este "povo" não tenho nenhum respeito.

A miséria, as desigualdades, o analfabetismo, não explicam tudo e não legitimam nada. Não é o regresso da PIDE ou da ditadura que nos falta ou que iria melhorar o que quer que fosse. O que nos faz falta é a reconstrução de uma elite, que tenha valores, que seja capaz de se bater por eles e que dê o exemplo. Eis uma coisa que a esquerda, amarrada ao Corão marxista-leninista, nunca percebeu. E que a direita transformou no triunfo do dinheiro e da hipocrisia. A morte das elites sempre serviu a emergência dos medíocres. Hoje, serve o "tempo novo", em que triunfa o oportunismo, a boçalidade e a venalidade. Não é Deus que está morto, são os homens bons que já não moram aqui.

Jornalista

Mais exigência e mais atenção às escolas POR José Manuel Fernandes

Editorial
Por JOSÉ MANUEL FERNANDES
Público Sábado, 02 de Outubro de 2004

O que tem feito o Ministério para apoiar as escolas que estão no fundo da tabela? Aparentemente nada, pois de ano para ano os seus resultados têm piorado de uma forma quase geral


O antigo ministro da Educação Marçal Grilo costuma dizer que o centro do sistema educativo são as escolas e, quando passou pela 5 de Outubro, tinha no seu gabinete um mapa do país onde alfinetes de várias cores marcavam as escolas que já tinha visitado. Ao quarto ano de publicação sucessiva do "ranking" das escolas secundárias, ordenadas de acordo com os resultados obtidos pelos seus alunos em oito das disciplinas mais frequentadas do 12º ano, é possível ver como o antigo ministro tinha razão - e como pouco tem sido feito na esmagadora maioria das escolas do país.

Como justamente assinala, nesta edição, Valadares Tavares, após esta série de resultados o que mais inquieta é que as piores escolas estão a ficar piores ou mais distantes das melhores, o que acentua as assimetrias. Isto mostra que os ensinamentos que o mastodôntico e, regra geral, acéfalo Ministério deveria tirar dos resultados que têm sido publicados não estão a ser tirados. Isto é: se os "ranking" permitem perceber as escolas onde os alunos obtêm melhores resultados (o que é muito importante para os pais quando estes têm liberdade de escolha) também indicam quais as que têm piores resultados - o que deveria levar o Ministério a desencadear acções destinadas a melhorar as condições em que essas escolas trabalham. Porque é possível melhorar: aqui e além há exemplos de escolas que saíram dos últimos lugares e registaram impressionantes progressos. Infelizmente são a excepção, o que indica que ou a evolução é conjuntural ou, então, resulta do esforço da escola. O que não devia ser possível era encontrar, dois anos seguidos, a mesma escola pública, para mais situada numa zona deprimida do país, no último lugar.

No entanto, em vez de centrar as suas preocupações na escola, em dar-lhes condições para terem lideranças fortes e corpos docentes estáveis, em ajudá-las a melhorar e a conhecer as melhores práticas, o Ministério faz exactamente o contrário ao, por exemplo, centralizar a colocação de professores e fazer das suas carreiras um rali aleatório pelo país que só acaba quando o professor chega à escola que deseja, um sistema totalmente centrado nos interesses dos professores e desfocado das necessidades das escolas. O erro final de um computador só torna depois ainda mais gritante, injusto e instável o que, por definição, está pensado para nunca permitir, por exemplo, a estabilidade dos corpos docentes.

Ora quando olhamos para as escolas que ocupam os lugares cimeiros da lista verificamos que, a par com a vantagem de disporem à partida de alunos com mais apoio familiar e provenientes de meios sociais mais avançados, todas elas fizeram da cultura da exigência o seu lema e todas elas procuram métodos que lhes permitam trabalhar melhor com os alunos - as reportagens que publicamos são, a esse nível, elucidativas. Especialmente a realizada no colégio de Vila Real que, surpreendentemente, alcançou este ano o topo da lista, um colégio que por se situar numa das regiões com piores resultados do país mostra que é possível fazer a diferença quando se trabalha para isso.

De resto o mesmo ocorre noutras regiões, onde por vezes se destacam ilhas de excelência num mar de mediocridade, sendo que alguns dos concelhos com melhores resultados médios nalgumas disciplinas são concelhos pobres do interior do país. É no que aí se passa que se deve pôr os olhos - é o que aí se passa que o Ministério deveria estudar e divulgar, pelo menos entre os que ficam sistematicamente para trás.

Esta última questão é, de resto, muito importante: quando há escolas que parecem irrecuperáveis, quando "cair" nessa escola é quase como ser condenado a um ensino medíocre, quando são os mais pobres que não conseguem fugir a esse destino, o Ministério deveria permitir a emergência de escolas concorrentes, mesmo que não públicas mas integradas na rede pública e cujos alunos, sendo caso disso, deveriam ser subsidiados para as frequentar. Isso permitiria uma liberdade de escolha que estimularia as escolas a lutarem pelos seus alunos, algo que notamos no topo da tabela onde se mantém um fortíssimo peso de estabelecimentos do ensino privado. E mantém-se porquê? Porque se não formarem bem os jovens que os frequentam, os pais mudam os filhos de escola - os pais que podem pagar, naturalmente.

Esta assimetria entre os que podem e, por estarem em escolas obrigadas a viver em ambiente concorrencial, vêem-nas melhorar os seus resultados, e os que estão condenados ao esquecimento no fundo da tabela é uma tremenda injustiça social que o Ministério, apesar de dispor deste excelente instrumento que é poder comparar os resultados finais, tem deixado acentuar. Assim, ao permitir a degradação comparativa de muitas escolas públicas, o que o sistema faz é exactamente o contrário do que apregoam os que defendem as virtudes da ausência de concorrência: garantir uma real igualdade de oportunidades. Algo que não existe enquanto os últimos forem cada vez mais últimos e não existirem alternativas melhores ou, por falta de meios financeiros, muitos não puderem aceder a elas. O que só se tem agravado com a mistura de estatismo quase leninista (contrário a uma real liberdade de escolha dos pais e alunos) e de centralismo napoleónico (inimigo das escolas, da sua autonomia e da sua responsabilização) que tem continuado a comandar as escolhas políticas feitas nos últimos anos na 5 de Outubro.

O clube da gestão ruinosa Por João Cândido da Silva

Público
Sábado, 02 de Outubro de 2004

As relações entre os municípios e os clubes de futebol constituem uma zona cinzenta e opaca onde se ocultam cumplicidades políticas e favorecimentos em negócios que mancham indelevelmente a credibilidade dos poderes políticos. Numa teia rodeada de um silêncio que resguarda os protagonistas de transacções realizadas sem critérios objectivos e à margem de elementares regras de boa gestão dos dinheiros públicos, crescem impunemente as ligações suspeitas entre o Estado e entidades privadas.

Em Lisboa, segundo relatou o PÚBLICO, uma "engenharia" financeira sobre terrenos que haviam sido oferecidos pela Câmara ao Benfica revelou-se, até agora, um péssimo negócio para a EPUL. A empresa já gastou mais de 40 milhões de euros sem que tenha recolhido qualquer benefício pela compra daquele bem imóvel ao clube lisboeta. Tudo em nome do financiamento do novo estádio da Luz.

Em Gaia, de acordo com uma reportagem da revista "Visão", o respectivo município suportou, sozinho, os 16 milhões de euros que custou o centro de estágio do FC Porto, sem exigir quaisquer contrapartidas. A própria autarquia, citada num relatório da Inspecção-Geral de Finanças, reconhece, até, que se aquele clube decidir abandonar a estrutura que lhe foi oferecida pela edilidade liderada por Luís Filipe Menezes, essa seria uma situação "desastrosa do ponto de vista dos recursos públicos".

O futebol insinua-se como uma doença maligna junto de autarcas pusilânimes que temem as consequências de uma sacudidela no pântano de promiscuidade em que se deixam voluntariamente atolar. Na ânsia de assegurar a boa vontade de dirigentes e adeptos, mostram ser realmente dignos de pertencerem a um só clube: o da gestão ruinosa.

O estranho mundo da informática POR João Cândido da Silva

Público
Sábado, 02 de Outubro de 2004

O MÍNIMO QUE SE EXIGE é que Maria do Carmo Seabra encontre justificações que ajudem a entender por que motivos dois fornecedores diferentes revelam desempenhos tão diversos e, pelo que se consegue perceber, em troca de contrapartidas que estão longe de serem idêntica

O estranho mundo da informática

O mundo da informática tem mistérios cujo esclarecimento não está acessível ao comum dos mortais. Conta-se, até, a história de quatro amigos, entre os quais um especialista nesta complexa ciência, que seguiam tranquilos num automóvel quando este se avariou. Perante um motor que teimava em não obedecer aos comandos da chave de ignição, os ocupantes do veículo dedicaram-se a dar palpites sobre o diagnóstico e a solução do problema. Mas o incidente só foi ultrapassado quando o engenheiro de informática sugeriu que saíssem todos do carro e voltassem a entrar. Concretizada esta simples operação, que num computador se resume a fazer um "restart", o bólide começou novamente a roncar, pronto para seguir viagem.

A novela sobre a colocação de professores nas escolas pode ser incluída no grupo de histórias que ajudam a fazer do mundo da cibernética um vasto terreno para as mais variadas perplexidades. Meses de trabalho sobre uma solução informática que devia funcionar de forma eficaz, evitando o atraso no começo das aulas que está a afectar milhares de famílias, pareciam ter sido inúteis perante uma alternativa que terá sido pensada em seis dias e executada em meia hora. Mas os erros denunciados pelos sindicatos revelam que, nesta matéria, depressa e bem são expressões impossíveis de aplicar.

Algo de estranho se passou por detrás deste episódio que não deixa de fornecer uma boa caricatura da lotaria que é a prestação de serviços de informática em Portugal. O Governo prometeu investigar responsabilidades em todo o acidentado processo e a ministra da Educação começou pela dispensa de dois directores-gerais. Mas o mínimo que se exige é que Maria do Carmo Seabra vá mais longe e encontre justificações que ajudem a entender por que motivos dois fornecedores diferentes revelam desempenhos aparentemente tão diversos em troca de contrapartidas que estão longe de serem idênticas. E que, ainda assim, não conseguem evitar os "milhares de erros" que continuam a retirar todo o crédito às listas de colocação.

Os percalços em redor da abertura do ano lectivo suscitam ainda outra questão. Quantos departamentos do Estado estarão apetrechados com soluções informáticas que não resolvem os seus problemas, apesar dos esforços de investimento na melhoria dos serviços públicos que vão tendo expressão orçamental, ano após ano? A resposta poderá ser incómoda mas a revelação de uma das fontes de desperdício de dinheiros públicos pode rondar por aqui.

Lições para o Futuro Por SANTOS SILVA

Público
Sábado, 02 de Outubro de 2004

processo de colocação de professores não está terminado. Neste momento, contam-se pelas centenas os erros da última lista publicada: escolas que desapareceram, várias pessoas colocadas na mesma vaga, docentes enviados para níveis de ensino ou disciplinas para que não têm habilitações, professores do 1º ciclo a quem foram atribuídos horários incompletos, etc. O facto de a quantidade dos erros não atingir a proporção escandalosa do passado dia 21 e de todos ansiarmos pela normalização do início das aulas, não deverá fazer esquecer as injustiças agora cometidas e a obrigação de repará-las.

Acrescem mais dois problemas. Aparentemente, a nova solução informática terá limitado a recuperação de vagas a cada um dos subconjuntos de candidatos à mobilidade (por doença, por preferência conjugal ou por aproximação à residência). Se foi assim, a eficácia da solução teve como preço a violação de direitos dos candidatos e o desrespeito pelo critério da graduação profissional. O Ministério já deveria ter esclarecido plenamente este ponto.

O outro problema foi causado por mais uma imprevidência da equipa de David Justino. Ao passar o destacamento por doença para a primeira de todas as prioridades, o concurso abriu caminho à multiplicação de falsas declarações e atestados médicos, com enorme prejuízo para todos quantos, honestamente, se contiveram nos princípios e regras aplicáveis. Resultado óbvio: centenas de professores efectivos foram ultrapassados por falsos doentes e ficaram por destacar professores com reais e graves problemas de saúde.

É indispensável reparar todos estes erros e injustiças e ainda repor nos seus direitos aqueles que já foram penalizados por erros anteriores e deles têm recorrido. O que custará mais tempo e instabilidade, mais vagas supranumerárias, mais horários zero, mais deslocações de docentes de uma escola para outra. É, por isso, um insulto à inteligência dizer-se que ficou tudo resolvido na terça-feira passada e o processo está encerrado. E também não é totalmente verdade que uma pequena empresa informática tenha descoberto instantaneamente o ovo de Colombo que processou sem falhas 50 mil candidatos. A colocação de professores continua a fazer vítimas inocentes e a lista final deste ano contém um número de erros e omissões substancialmente superior ao que era normal. Uma e outra coisa exigem averiguação e responsabilização.

De qualquer modo, há lições que já podem ser tiradas para o futuro. E a primeira e mais importante é a que consiga integrar o desastre do concurso no caos mais geral que a direita semeou, em dois anos, no nosso sistema educativo. É que o ano lectivo não se ressente apenas daquele desastre. Ao mesmo tempo que ele ocorre, começa um novo currículo de ensino secundário que põe ainda mais em crise o ensino das ciências experimentais e que arranca sem qualquer trabalho prévio de informação aos docentes e famílias e orientação escolar dos alunos. Em 2005 haverá (haverá?) provas nacionais em certas disciplinas do 9º ano, mas nada se sabe sobre como se vão realizar e com que efeitos na progressão dos estudos. A administração educativa foi descapitalizada e está hoje incapaz de responder a qualquer solicitação das escolas. Consumiu-se toda a energia na tentativa de impor uma nova Lei de Bases que desafiava a própria Constituição e acabou logicamente por abortar.

Em suma, governou-se para o senso comum, desviando a atenção dos problemas reais do sistema, na ânsia de conseguir a chamada boa imprensa. É oportuno lembrá-lo hoje, que sai mais um "ranking": o Ministério continua a patrocinar essa espécie de campeonato nacional de notas, mas a avaliação das escolas jaz no mesmo cemitério para que a mandou David Justino (liquidando o processo de avaliação que encontrou já testado e praticado) e nenhum dos apoios prometidos às escolas pior colocadas no "ranking" foi concretizado!

Primeira lição, portanto: não é possível melhorar as coisas se não se fizer uma alteração radical de política, se não se reatarem os laços de confiança com as escolas, se não se abandonar a sobranceria, se não se chamar quem sabe e cuida da educação para as funções mais importantes do Ministério e da administração. Infelizmente, é de temer que tudo fique na mesma: a nova equipa política mostra a mesma arrogância da anterior e a mesma indiferença, para não dizer incompetência, pelo lado pedagógico, como se essa não fosse a razão de ser de todo o sistema, as escolas continuam entregues à sua sorte, e à administração continuam a chegar indivíduos que sabem tanto de educação como eu de aeronáutica.

Segunda lição: a consequência mais nefasta do processo de colocação não foi o atraso em várias semanas do arranque do ano lectivo, mas sim o enorme rombo provocado na organização e na imagem social da administração educativa e das escolas públicas. É, pois, aí que deve incidir o trabalho de recuperação. Que passa, incontornavelmente, pela condução sem falhas do próximo concurso. Como ele começa já em Janeiro, não são exequíveis alterações de fundo. Algumas correcções terão de fazer-se, designadamente para evitar a repetição do escândalo das falsas doenças. Mas o esforço principal tem de ser de natureza prática: acompanhar politicamente desde o início o próximo processo, ouvir bem as forças sindicais no seu decurso, construir sistemas técnicos fiáveis e com válvulas de segurança. Sei, senhora ministra, que dá trabalho, mas é para isso que supostamente foi empossada...

Terceira lição, a de efeitos menos imediatos, mas a mais decisiva para a solução, a prazo, do problema. Ao contrário do que sustentou o Governo Durão Barroso, não é centralizando e uniformizando ainda mais o processo de colocação dos docentes que se favorece a estabilidade. É, sim, aumentando gradual e progressivamente as margens de autonomia das escolas na gestão do seu pessoal (mormente através da possibilidade de contratação própria para certos grupos de disciplina ou certos cursos, e de recondução, em certas condições, dos docentes que lhe foram afectados). É incentivando aqueles que se dispõem a ceder no seu direito à mobilidade em troca de outro tipo de benefícios (concedendo, por exemplo, alguma prioridade aos que aceitarem uma colocação plurianual). É fazendo depender menos a graduação da simples soma das classificações da formação inicial (não calibradas entre si) e dos anos de serviço.

Esta é uma boa, mas complexa discussão, até porque lidamos com um caso clássico de conflito entre vários interesses legítimos. Mas é uma discussão que vale a pena ter, nos termos adequados: quer dizer, não com os que semeiam o caos na escola pública que desprezam, mas sim com os que pretendem promovê-la e melhorá-la.

PROFESSOR UNIVERSITÁRIO