Monday, August 30, 2004

Obscurantismo

João César das Neves
(DN, publicado segunda feira, dia 18 de novembro de 2003)

Quase 30 anos depois do 25 de Abril, é estranho ver em Portugal hoje alguém a clamar por uma liberdade fundamental.

A nossa sociedade está longe de ser perfeita, mas orgulhamo-nos justamente de termos garantidos todos os direitos cívicos.

Todos, menos um: não há liberdade educativa. O encontro do Fórum para a Liberdade de Educação, realizado este fim-de-semana em Lisboa, chamou dramaticamente a atenção para esta grave falha democrática do nosso sistema.

Mas o problema não é apenas de direitos.

A falta desta liberdade, como antes das outras, também se está a traduzir em sérios prejuízos para o desenvolvimento do País.

O desastre da educação é, sem dúvida, a mais preocupante das nossas dificuldades. Os testes internacionais mostram bem que aí Portugal não está na cauda da Europa. Está mesmo no meio de África.

Gerações de estudantes perdem o seu tempo nas escolas para saírem sem os conhecimentos mínimos. A maioria chega aos empregos e universidades com fortes vícios de raciocínio e lacunas graves de conhecimento e metodologia. Não sabem pensar, calcular, escrever; não conseguem trabalhar, analisar situações, resolver problemas. São antes especialistas em matérias abstrusas e minúcias pedagógicas. Os nossos estudantes são vítimas do obscurantismo.

A causa desta situação é simples e evidente: Portugal adoptou um sistema de ensino estalinista. Naturalmente que os resultados são soviéticos.

Vivemos num modelo de programa único, de pedagogia única, de exame único, de ensino único. Só não temos livro único porque é preciso mudar todos os anos para alimentar autores e editoras. Os professores adoram o conforto do funcionalismo. O ministério delicia-se com o poder do gigantismo. Os custos explodem. Os resultados estão à vista. Os mais desastrosos sentem-se nas línguas, sobretudo o Português, e na Matemática. Mas os mais patentes e prejudiciais registam-se no campo da moral.

A escola tem um papel essencial na formação humana dos seus estudantes. Isso é verdade em todos os graus de ensino, mas vital no básico. Neste tema, o modelo estalinista do Ministério da Educação embate contra a evidência: só é possível fazer educação moral dentro de um quadro cultural específico. Não existe uma ética geral e abstracta. Fora dos princípios genéricos (quase) consensuais, toda a aplicação da moral se faz dentro de uma atitude vivencial particular. Há uma ética cristã e uma ética muçulmana, uma ética marxista e uma ética liberal, uma ética positivista e uma ética burguesa.

Como nas viagens, o caminho é determinado pelo destino. Mas o Estado quer ser neutro, laico, imparcial.

Que fazer?

A solução passa por um método simples: a fraude.

O Estado assume explicitamente que a formação ética tem de ser específica e pede a colaboração da sociedade nessa leccionação.

Mas tem usado dois tipos de embuste na resposta a este problema. O primeiro, utilizado por exemplo na célebre disciplina de Educação Sexual, é o de impor um quadro cultural particular sob a aparência de neutralidade. O ministério adjudicou discretamente a leccionação dessas matérias à Associação para o Planeamento da Família. Esta, afirmando ensinar resultados científicos e informações rigorosas, está de facto a canalisar modelos de comportamento e opiniões muito particulares.

O programa previsto finge tratar de temas sanitários e regras higiénicas, mas é a condenação da castidade, da fidelidade, da temperança, da elevação do amor e a promoção declarada da promiscuidade, do adultério, da homossexualidade, do aborto.

A segunda fraude, ainda mais atrevida e infame, foi utilizada na questão da Educação Moral e Religiosa.

Aí, a instituição contactada às claras foi a Igreja Católica. Naturalmente, o ministério não pode impor a obrigatoriedade da versão católica.

Isso é liberdade de educação. Mas depois não consegue arranjar alternativas para os outros alunos do básico (de facto uma pequena minoria). Isto é falta de liberdade de educação.

Perante esta sua fragorosa incompetência, o ministério envereda pelo paroxismo do ridículo: retira a Educação Moral das horas normais de ensino. Com um desplante cândido, os nossos pedagogos assumem que a moral passa a ser optativa, que a ética não pertence ao programa lectivo, que os valores são actividade circum-escolar. Dizem isto sem pestanejar! Anunciam uma tal aleivosia sem corar de vergonha! Promulgam uma coisa destas sem serem castigados!

Estes são apenas dois exemplos entre mil. Por isso é tão importante que se compreenda que a luta por esta liberdade cultural é tão candente e decisiva como os antigos combates pela libertação política. Tal como então, uma clique de iluminados, em nome de um modelo arcaico, está hoje apostada no obscurantismo e no atraso do País.

É fundamental que saiam frutos de iniciativas como o Fórum para a Liberdade de Educação. A nossa democracia e o nosso desenvolvimento dependem disso.

naohaalmocosgratis@vizzavi.pt

Com um desplante cândido, os nossos pedagogos assumem que a moral passa a ser optativa, que a ética não pertence ao programa lectivo, que os valores são actividade circum-escolar. Dizem isto sem pestanejar!

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